A história de Allou Demba Dia, que percorreu a Líbia de Kadafi e arriscou a vida na travessia do Mediterrâneo antes de ser adotado e adotar Bolzano como sua nova casa
Allou Demba Dia se destaca na paisagem da região do Trentino-Alto Ádige, no norte da Itália, fronteira com a Áustria, nos pés dos Alpes. Bem longe de casa, esta silhueta elegante, magra e negra se sobressai no cenário bem diferente e muito longe da sua terra natal. Ele tem pouco mais de 30 anos e nasceu num vilarejo africano, no interior da Nigéria. A carestia e a falta de perspectiva o convenceram de ir para a Argélia primeiro e depois para a Líbia em busca de trabalho. A chamada revolução da Primavera Árabe o surpreendeu em pleno reino do coronel Kadafi. Com os dias contados pela rebelião que dilagava no Magreb, o ditador histórico tentava impedir a chegada da democracia à sua terra, rica de petróleo. A iminente queda do déspota africano, amigo e inimigo dos potentes da Terra, lançou a Líbia num caos que reina até hoje. As lutas tribais ocuparam o território, cada uma reinvidicando o seu espaço, mantido coeso a ferro e fogo por Kadafi. Allou Demba Dia olhava o horizonte como a sua única salvação.
— Era perigoso e não tinha outro jeito. Eu tinha que atravessar o Mar Mediterrâneo e vir para a Europa, chegar à Itália. Não tinha nada a perder. Estava sendo obrigado a pegar em armas e combater contra os rebeldes. Ou eu lutava pelo regime ou lutava pela minha sobrevivência. Poderia morrer combatendo, mas eu não queria isso. Sabia que assinava a minha sentença de morte se eu subisse naquele barco. Mas pelo menos teria uma chance — conta à Comunità, enquanto corta o capim num grande terreno em Riva di Tures, um povoado de poucos habitantes, a 1.600 metros de altura, numa natureza incontaminada e que vive da agricultura, do pastoreio e do turismo durante todo o ano.
— De onde eu venho, existem os perigos da floresta, animais grandes. Aqui não tem isso — compara, com um sorriso branco na boca, Allou Demba Dia, que também cuidava da roça em seu pedacinho de chão nigeriano. Depois ia ao mercado, cuidar do comércio do fruto das suas plantações. Agricultor e pastor em pequena escala, ele sabe cuidar da terra e aprendeu novos ofícios em seus quase quatro anos de Itália.
Mas ele sabe que, entre todos os animais, o mais perigoso atende pelo nome de homo sapiens.
— Passamos três dias no mar, sem comer nem beber. Éramos 150 pessoas ali dentro, espremidas. O motor quebrou, mas fomos encontrados a tempo por um navio da Marinha Italiana, que nos levou para a ilha de Lampedusa. Dali fomos para a Sicília, Puglia e depois Bolzano. Eu gosto muito daqui, mas quando chega o inverno, tem tanta neve… Tudo é muito diferente de onde eu vim. Mas estou já acostumado. Trabalho também em um hotel (hotel Berger), lavo os pratos na cozinha, rego as flores nas varandas dos apartamentos. Tratam-me muito bem aqui. A família proprietária, o pai, a mãe e as duas filhas são pessoas muito bacanas. Eu sinto muito a falta da minha família, mas não tenho passaporte para poder viajar. Estou esperando que isso se resolva logo — diz ele, olhando para um avião no alto do céu, que voa rumo ao norte, cortando a fronteira com a Áustria. Seus pais já morreram, mas ele ainda tem dois irmãos e uma irmã.
Quem acolhe um imigrante em casa recebe incentivo mensal do governo em dinheiro
Os abrigos religiosos e as instituições públicas beiram ao colapso quando o tema é a imigração. Por isso, o governo está incentivando o uso de casas privadas para ajudar nesta tarefa de acolhimento. Os proprietários ganham uma pequena contribuição mensal de 80 a 100 euros por imigrante. Até o mês de outubro, ao menos a região do Alto Ádige deve receber mais 700 clandestinos.
Dos trens que chegam a Bolzano vindos de Roma, principalmente os noturnos, desembarcam centenas de imigrantes das mais diferentes nacionalidades, entre sírios, etíopes e nigerianos. E chegam com a certeza de que nada pode impedi-los de alcançar a Alemanha, principal destino dos clandestinos. Sobreviventes de uma aventura assustadora, que inclui a travessia de desertos e de um mar traiçoeiro, eles se sentem prontos para cruzar os Alpes. A barreira policial impede a maioria de continuar a odisseia, mas a ideia fixa de ultrapassar a fronteira não abandona os imigrantes. Eles não têm nada a perder. No caso de permanência na região do Alto Ádige, existe uma vantagem: aqui, a mentalidade é outra e o assistencialismo eleitoral não faz parte da cultura, baseada no trabalho. Por isso, o desafio não é apenas encontrar um lugar para todos eles, mas também criar trabalho.
— O problema é muito claro. Temos que resolver este tema, não um problema. Temos a necessidade de uma solução. A imigração pode ser feita apenas se encontramos uma possibilidade concreta de integração e penso que isso é possível — diz à Comunità Thomas Seeber, advogado nascido em Riva del Tures e residente em Viena.
Grupo criado no Whatsapp tenta encontrar os imigrantes dispersos na fuga da Líbia
O ancinho continua a recolher o capim, acumulando o feno. O sol a pico não é um problema para Allou Demba Dia, acostumado com as temperaturas bem mais elevadas de seu país de origem. Aqui, nos dias quentes de verão, ela raramente supera os 30 graus centígrados. Nas horas vagas, ele se dedica à comunicação com seus amigos de travessia e com os seus parentes. Interessado e curioso, sozinho, Demba Dia aprendeu a fotografar, filmar, editar no telefone celular, além de aprender e bem, principalmene o italiano, e o alemão. Ele criou um grupo no Whatsapp para localizar os companheiros que se dispersaram pela Itália depois da fuga da Líbia.
— Tentamos manter contato para poder nos ajudarmos — conta o nigeriano do Alto Ádige. Allou Demba Dia tenta sobretudo manter as raízes com a ajuda da tecnologia.
— Meu sonho é voltar ao meu país para esposar três ou quatro mulheres. Aqui não pode. Se eu caso com uma alemã, tem que se ser somente ela — diz rindo, sabendo que a bigamia é proibida na Itália.
Curioso que não diz “italiana”, quando se refere a uma mulher do local. Isso porque em Riva de Tures e em toda a zona de Bolzano, o idioma principal é o alemão, assim como a mentalidade, germânica. Este canto da Itália é um enclave de sabedoria e de trabalho que não tem nada a ver com os ritmos e hábitos latinos, principalmente, de Roma para baixo, ou de Florença para baixo, como reza a lenda popular baseada em frios e concretos números da economia do país.
Allou Demba Dia sabe que tirou um “bilhete premiado” na loteria dos refugiados. Apesar dos choques culturais, primeiro de um continente para outro, ele se sente em casa, frio à parte. O glaciar Collalto, com 3.436 metros de altura, coberto pela sua neve eterna, está ali. Essa montanha de gelo e pedras domina a paisagem e cobre a linha do horizonte. Do outro lado está a Áustria.
— Não, eu nunca quis ir para lá, na outra parte. Antes dos atentados recentes na Europa, era muito fácil atravessar a fronteira. Agora, tudo é muito mais difícil. Eu estou bem aqui e prentendo continuar com a minha vida. Apenas sinto muito a falta da minha família — diz, com tom de melancolia.
Durante o verão, o vento que sopra do Saara transporta os grãos de areia do deserto pelas camadas mais altas da atmosfera. As correntes de ar voam até aqui e depositam as partículas de terra vermelha ao longo do arco alpino. Em alguns trechos, a neve ganha uma coloração rosa, amarela, de diversas nuances e tonalidades. Um espetáculo da natureza que remete à história de Allou Demba Dia. Este vento, chamado de Siroco, sopra sobre a pele de ébano como uma carícia de sua terra natal.