{mosimage}REcine completa dez anos e homenageia o cinema italiano no Arquivo Nacional com exibição de filmes históricos e debates
O Festival Internacional de Cinema de Arquivo comemorou dez anos de existência prestando homenagem à Itália, país detentor de uma das mais importantes cinematografias do mundo. No período de 7 a 11 de novembro, o público assistiu a clássicos e raridades do cinema italiano com direito a entrada franca. O evento fez parte das comemorações do Momento Itália-Brasil e contou com o patrocínio da Petrobras, Eletrobrás, Casa da Moeda e do BNDES.
Os filmes exibidos no Arquivo Nacional seguiram um recorte cronológico e temático. Cinco frentes da relação cinematográfica entre Itália e Brasil foram abordadas: os pioneiros dos dois países; os filmes da Companhia Vera Cruz; os grandes clássicos italianos do pós-guerra; o cinema brasileiro depois dos anos de 1950, influenciados pelo Neorrealismo; e o caso do Cinema Novo e as relações com a Itália.
Desde que foi criada, há dez anos, a mostra cumpre uma função cultural e social de conservação e divulgação de filmes por vezes esquecidos, mas de grande importância histórica, como bem enfatizou Clovis Molinari, curador do evento.
— O princípio básico que orienta o REcine é o de restabelecer uma nova relação com o público. Tirar os filmes das prateleiras: este é o principal objetivo do festival. Toda vez que reaproveitamos os filmes, aumentam as chances de ganharem fôlego e permanecerem no convívio social. O que não pode é filme excluído, separado, escondido. Se isso acontecer, não é democrático nem vai ao encontro do verdadeiro papel de uma instituição pública — conclui.
O cinema brasileiro, desde sua origem, recebe forte contribuição de artistas e empresários vindos da Itália. Paulo Benedetti, Vittorio Capellaro e Alfonso Segreto, entre outros, ocupam posição de destaque na história e no desenvolvimento da produção cinematográfica brasileira. Por isso, a intenção do festival, de acordo com Clovis Molinari, era estabelecer um traço que indicasse onde os italianos influenciaram os brasileiros, sem comparar os dois tipos de cinema, porque ambos guardam muitas peculiaridades.
— O REcine não pretendeu em nenhum momento fazer uma comparação entre as duas cinematografias. Entretanto, não tivemos dificuldade em perceber que os italianos imigrantes do início do século XX, até mesmo um pouco antes, contribuíram para a fundação do cinema brasileiro. A Itália está na raiz do nosso cinema! Depois, os técnicos foram chegando e participaram de diversos projetos, como o da construção de um grande estúdio, nos moldes de Hollywood, que foi a Companhia Vera Cruz no final dos anos de 1940 e início da década de 1950. A relação com o Cinema Novo, e até mesmo antes dele, é evidente. O movimento do Neorrealismo influenciou todo o mundo, o Brasil não ficou de fora. Filmes simples, de baixo orçamento e repletos de preocupações sociais, com atores não profissionais, foram feitos no período do Cinema Novo. Estes também conquistaram o público estrangeiro, notadamente as inquietações provocativas e renovadoras de Glauber Rocha — ressaltou Molinari.
Na noite de abertura, foram exibidos três filmes do cineasta Gilberto Rossi, acompanhados pela música instrumental desenvolvida ao piano por sua bisneta Ana Cláudia Agazzi, recriando a atmosfera das primeiras sessões do cinema mudo.
Ao longo do festival, o público foi agraciado com raridades. Destaque para Cabiria, de Giovanni Pastrone, filme de 1914, em cópia restaurada. Outra novidade para os expectadores foi a série de filmes de Vittorio De Seta, cineasta siciliano desconhecido do grande público brasileiro. Os primeiros filmes italianos, da fase silenciosa, enviados pelo Museu Nacional de Cinema e pela Cinemateca de Bolonha, também estamparam a grande tela.
Nelson Pereira dos Santos
e o cinema italiano
A assistente de direção Renata Franceschi, que trabalhou, na Itália, com diretores como Luchino Visconti e Franco Zeffirelli, lembrou que o cineasta Nelson Pereira dos Santos, considerado o “tradutor do Neorrealismo” no Brasil, tinha muita simpatia pelo cinema italiano. O REcine defende a ideia de que, na obra de Nelson, há um grande diálogo com a filmografia de Visconti, e Renata confirma essa tese.
— Conheci Nelson em 2004, em uma retrospectiva de filmes dele no Instituto Latino-Americano de Roma. Como trabalhei por longo período com Visconti, percebi que havia uma amizade entre eles. Visconti, que era de esquerda, apoiou Nelson nos anos 1960, época da ditadura militar no Brasil. Além dessas afinidades, é nítida a influência de Visconti e do Neorrealismo italiano no cinema do diretor brasileiro. Exemplo disso é o filme Vidas Secas — ressaltou Franceschi.
O festival apresentou também uma mostra competitiva, sob o critério de aceitar somente filmes que reutilizam imagens de arquivo de instituição pública ou privada. Todos os anos, acontece uma oficina, durante a qual são disponibilizadas essas imagens. Na edição deste ano, o responsável foi Luiz Carlos Lacerda, que formou grupos que realizaram curtas-metragem com o tema: Onde está a Itália na cidade do Rio de Janeiro? De acordo com Molinari, a intenção da competição é incentivar o exercício da edição, da montagem de filmes com imagens antigas.
— O passado pode ser refeito, relido, reinterpretado e revelado para quem o desconhecia em suas particularidades. A intenção foi estimular esse gênero de filme barato. Um arquivo na mão e uma ideia na cabeça! Ou um cinema sem câmera! — completou Molinari.
Ao longo do festival, aconteceu o Fórum de Debates, com o objetivo de levantar questões da área cinematográfica, recuperar pessoas, ideias e projetos. O público teve oportunidade de conhecer técnicas de preservação e restauro de películas.
Homenagens a
cineastas e premiações
Um dos momentos mais marcantes foi a sessão de homenagens, que buscou resgatar personalidades que estiveram durante muito tempo na ativa e que hoje se encontram esquecidos. A edição de 2011 do REcine prestou reverência a nomes como Pascoal Segreto, Paulo Benedetti, Gianfrancesco Guarnieri, Dib Lufti, Gianni Amico, Gustavo Dahl, Ruth de Souza e Vanja Orico. Para completar a lista, Paulo Cesar Saraceni, cujo filme inédito O Gerente, baseado em conto homônimo de Carlos Drummond de Andrade, foi exibido na Mostra Informativa do evento. A atriz Ruth de Souza, homenageada com a exibição de cenas de Sinhá Moça de 1953, dirigido por Tom Payne, demonstrou saudosismo do cinema antigo. A atriz Vanja Orico, que canta e interpreta em O Cangaceiro, de Lima Barreto, falou da importância do REcine para manter vivos, na memória das pessoas, os mestres do cinema.
— O Cangaceiro foi o melhor filme já feito. Lima Barreto morreu pobre, esquecido num asilo em Campinas, porque nunca quis sair do Brasil. Os grandes pioneiros são esquecidos — lamentou Vanja.
Após uma semana intensa de exibição de filmes, o REcine foi encerrado no dia 11 de novembro, com a presença do cônsul da Itália no Rio de Janeiro, Mario Panaro. O júri oficial elegeu como melhor filme da mostra competitiva No lixo do Canal 4, de Yanko Del Pino, enquanto o voto popular escolheu Clementina de Jesus – Rainha Quelé, de Werenton Kermes. O Prêmio Especial do Júri ficou com o filme La Febre del fare, de Michelle Mellara e Alesandro Rossi. Molinari acredita que o evento conseguiu atingir o seu objetivo, valorizando e divulgando as obras audiovisuais italianas que tanto influenciaram o Brasil.
— O legado deixado para o cinema brasileiro tem a ver com a própria natureza humana dos italianos: paixão, inteligência, eloquência, capacidade técnica e inventividade! — finalizou Molinari.