{mosimage}Autora de livro previsto para virar filme ainda este ano, Silvia Avallone fala do processo de criação do seu romance de estreia que toca em assuntos cruciais e polêmicos para a sociedade italiana, como machismo, drogas, proletariado e o futuro de um país em crise
Silvia Avallone tem 25 anos. A jovem publicou o livro Aço e chegou em segundo lugar no tradicional concurso literário italiano Premio Strega, no ano passado, vencido pelo escritor Antonio Pennacchi, com Canale Mussolini. Nada mal para um romance de estreia, que já teve os direitos cinematográficos comprados, com o lançamento do filme previsto para este ano. O livro narra as aventuras de jovens que se amam, trabalham, estudam e se drogam à sombra e dentro de uma gigantesca siderúrgica, a Lucchini, localizada na cidade de Piombino, diante da Ilha de Elba, onde existia uma importante jazida de ferro. Silvia Avallone pinta um afresco italiano de uma geração crescida com o fenômeno sócio-econômico-político do “berlusconismo”. No caldeirão, há ritos de passagens de adolescentes, a iniciação sexual, a droga no mundo do trabalho, a vida da classe operária em extinção e o reflexo de uma vida espelhada na imagem vendida pela televisão, cada vez mais longe da realidade.
ComunitàItaliana – O livro é um acerto de contas com o seu recente passado?
Silvia Avallone – Como adolescente, a minha imagem da fábrica moldou-se nas palavras dos meus coetâneos mais corajosos. E é esta fábrica que eu quis contar: esta visão através dos olhos dos jovens heróis, dos meus amigos. Eu senti a necessidade de restituir a vitalidade, o fascínio, a potência de um lugar esquecido do circo mediático, atenta a não deixar de lado o drama das ‘mortes brancas’ (acidentes fatais em locais de trabalho) e os novos problemas concretos dos trabalhadores de hoje. Um lugar de tragédias, mas também de maravilhas e, sobretudo, de imensa humanidade, de grande orgulho, e dignidade. O meu ponto de vista originário, afetivo, nunca mudou, nem quando eu entrei e vi com os meus próprios olhos o coração do gigante.
CI – Como você vê a mudança no plano humano da “experiência do trabalho”, principalmente na siderúrgica Lucchini, onde se tem a impressão de estar “em qualquer lugar do mundo”? Esta realidade poderia ser universal?
SA – Estas são fábricas colossais, que parecem destroços do século passado: o século do aço, se pensamos às armas e aos navios enormes produzidos pelas duas grandes guerras mundiais, e ao nome da rua, Stalingrado, não por acaso, do ditador Stalin. Hoje não são mais assim: a indústria pesada não está mais no centro, mas, sim, à margem da atenção do mundo ocidental. E é por causa disso que eu quis contá-la: para recordar que o mundo industrial continua a existir, mesmo que em meio a uma transformação, e continua a representar uma fonte de vida para muitas famílias e muitos jovens em diferentes territórios no mundo dos quais pouco se fala. Este mundo esquecido, mas ainda tão vivo, para mim, é ainda um mundo que merece ser contado, observado, escutado, conhecido com o desejo de compreendê-lo e dele tomar conta, com os olhos e as novas palavras. Hoje, é difícil que um jovem sonhe em ser operário: sonham-se outras coisas e isso não é um delito. Ao contrário, é um dado de fato e um sinal de mudança. Porém, em muitos lugares do mundo, a decisão de ser operário em uma fábrica perigosa e gigantesca como aquela siderúrgica é um destino, uma escolha necessária, e é preciso ocupar-se deste destino, também, transformando-o em menos feroz e mais em linha com as aspirações dos jovens de hoje. Melhorar, não apenas no campo fundamental e capital da segurança e dos direitos, mas também no da cultura.
CI – Os conceitos de “consciência de classe”, “proletariado” e “subproletariado” são conceitos em transformação. Estariam em extinção? Se sim, quais seriam os novos? Agora, que você escreveu o livro, pensa que a obra possa ser uma “vingança social”?
SA – Creio que os termos como consciência de classe e proletariado pertençam a um dicionário fora de uso. Mas não deixam de existir, infelizmente, os problemas sociais e os dramas aos quais estes termos fazem referência. Existem na Itália, como em outras paragens, lugares nos quais para um jovem é difícil de se realizar e, até mesmo, de sonhar com um futuro diferente daquele de seus pais. Existem ainda os chamados vencedores, os humilhados e os ofendidos. Hoje, podemos alardear uma consciência de liberdade e uma cultura desconhecida das épocas precedentes. No entanto, quase sempre fazemos contas com mil e uma dificuldades materiais, obstáculos, discriminações e injustiças que anulam as conquistas da cultura. Penso nas mulheres, nas classes sociais mais frágeis, nos jovens com empregos temporários e nos muitos trabalhadores que lutam contra o fechamento das fábricas neste momento de crise global. Uma grande escritora italiana chamada Elsa Morante dedicou um inteiro e formidável romance a descrever com quanta crueldade a História com “h” maiúscula tritura as vidas das pessoas comuns: as pessoas sem poder, a vida que pulsa fragilidade e maravilha fora das suas lógicas. Ecco, a minha ideia é que a História não tenha sido muito alterada, mas que, hoje, em muitíssimas partes do mundo, a consciência das pessoas e o desejo de mudar as coisas (como a internet, a literatura, as revistas, nos protestos populares nas ruas e nas praças) sejam exponencialmente aumentados. Por isso sinto-me otimista, sem negar a realidade dos problemas, em toda a sua espessura.
CI – Como você trata o tema da sexualidade?
SA – Eu tentei contar a descoberta da sexualidade tomando distância da vulgaridade e dos estereótipos do comércio, da ânsia do consumismo que inundam, também, nesta delicadíssima e extraordinária experiência. A sexualidade de Anna e Francesca tem a ver com o mar, a luz, o verão, com a descoberta de laços secretos, de desejos arcanos e desconhecidos. Também, aqui, como na fábrica, ensinou-se uma magia que se apresenta com força e delicadeza, como se faz com as coisas míticas.
CI- Anna e Francesca são as duas adolescentes e protagonistas do livro. Como elas usam a beleza no meio em que vivem?
SA – A beleza de Anna e Francesca é, como cada beleza, uma arma e também um poder. Mas é justo que este poder seja exercitado na vida privada, nas dinâmicas do amor, do jogo e das emoções. Que a beleza feminina seja usada como mercadoria, que seja degradada a um objeto e exibida pela TV, sem respeito, é um escândalo e, além disso, um escândalo muito velho, superado pelas batalhas que as mulheres fizeram ao longo da história, com os resultados entregues a nós. A paridade com o homem foi alcançada no plano da consciência, mas não na realidade. E aqui fechamos o círculo do que eu dizia antes: a importância da escola, a importância de uma sociedade que ofereça, efetivamente, a possibilidade a todos de escolher o próprio futuro. Anna e Francesca devem poder saber e entender que a emancipação delas está ali, entre os livros e os deveres na sala de aula.
CI – O livro aborda a questão da droga entre os jovens operários como instrumento para vencer o cansaço e aguentar os ritmos impossíveis. Qual é a sua opinião sobre o uso das drogas no mundo do trabalho e da diversão juvenil?
SA – Em geral, o fenômeno do consumo de drogas me assusta muito e creio que seja uma praga que deve ser combatida, começando por dar a possibilidade aos jovens de realizarem-se, na vida profissional e na afetiva; oferecendo-lhes a oportunidade de sonhar e alcançar um futuro melhor. Coisas que, nestes tempos duros, é realmente muito difícil. Mas o consumo de droga que mais me aterroriza é aquele que ocorre nos locais de trabalho, para combater a fadiga e o ritmo massacrante dos turnos. Entre os jovens que enfrentam o trabalho pesado do ponto de vista físico, para poder aguentar oito horas, mais as horas extras, e depois ter ainda energia para sair à noite, dançar e se divertir, recorrem à cocaína ou às drogas sintéticas. Observo este fenômeno como uma verdadeira tragédia e, por isso, quis contá-lo. Certas fábricas envenenam já por si só, por causa do fumo, do amianto, da pólvora sutil. Acrescentar outro veneno, contribuindo para matar lentamente estes jovens trabalhadores, é um delito que deve ser combatido.
CI – Como os códigos familiares mudaram ao longo do tempo? Nestes últimos dez anos, você acha que nas províncias italianas (e nas cidades) exista ainda um machismo reinante e uma silenciosa violência doméstica? Quais são as regras familiares nas quais você acredita? Serão as mesmas que poderia aplicar aos seus filhos em um hipotético futuro?
SA – Existem, ainda, no segredo dos apartamentos, muitíssima violência de pais patrões sobre as mulheres e as filhas. Resistem núcleos — mais numerosos do que se pensa — de um machismo reinante. A violência dentro da família é um tabu contra o qual tende-se a não fazer caso, a se esconder. Por isso, eu quis contá-lo: para jogar uma luz nos costumes arcaicos que, porém, continuam a permear as nossas moderníssimas culturas. Na Itália, a metade das mulheres não trabalha. Por isso, continuam ligadas a pais e maridos que, quase sempre, pensam que podem exercitar direitos de propriedade crua e nua sobre elas. Esta posição feminina subalterna é tão dolorida quando, no papel, a mulher tem os direitos reconhecidos de ser livre e autônoma. A família é um lugar, quase sempre, pouco edificante, onde cova a violência e onde é difícil crescer. Falar do problema significa, ao meu ver, começar a combatê-lo.
CI – Neste momento da vida italiana parece existir pouco ou nenhum tempo e espaço para cultivar uma ideologia… ela existe ainda? Você chegou a receber críticas negativas dos operários ou dos moradores da cidade?
SA – Eu não recebi, pessoalmente, nenhuma crítica dos operários, mas de alguns habitantes, sim, que não se reconheceram no meu romance, e que, ao meu ver, esqueceram que um romance não é uma reportagem ou uma sentença, mas uma metáfora que parte do detalhe para expressar alguma coisa de universal. “Acciaio” é, acima de tudo, a história de Anna, Francesca, Alessio, Sandra etc. História de pessoas, de vidas que se entrelaçam, se encontram, de famílias, de adolescentes que sonham sonhos iluminados e errados. Ela conta um mundo humano que eu amo, que acho muito precioso. A literatura não julga e não fornece ideologias. Do meu ponto de vista das coisas, a literatura — por mais que possa ser engajada e tomar posições — não força nunca a realidade nas “casinhas” dos conceitos, mas restitui a vida na sua complexidade, nas suas contradições, nas suas confusões, e, então, na sua beleza de vida que se mantém sempre, e de qualquer forma, um mistério livre de definições. Creio que hoje, na Itália como fora daqui, não exista mais espaço para ideologias como surgiram nos dois séculos passados. Hoje, existe a vontade de olhar a realidade cara a cara, sem entricheirar-se em barricadas ideológicas. E há o desejo de mudar o que esta realidade fere, discrimina, cria violência. As ideias que sabem se confrontar com a realidade, e olhar o futuro, sem violentar a realidade ou os outros, são ideias das quais temos necessidade de haver.
CI- Qual é a saída deste momento dramático de crise para a sua geração e aquela que vai chegar?
SA – Acho que todos, sem nenhuma exclusão, devem ter a possibilidade de estudar de verdade e, então, de escolher entre destinos diversos, livremente, segundo as suas vocações e os seus desejos. A escola deve ensinar, acima de tudo, a pensar, a imaginar o futuro: o próprio e junto aos outros. Porque cada um é, também, um de todos, e ninguém se realiza sozinho.
CI – Como é Silvia Avallone quando escreve? É verdade que você gosta de Lady Gaga e de fazer faxina em casa?
SA – Eu escrevo apenas no computador, porque sou filha do meu tempo (tecnológico) e depois, como de costume, quando escrevo, cancelo e reescrevo milhões de vezes… Só o pensamento de todo o papel que teria desperdiçado me provoca arrepios! E como escrever é, muitas vezes um esforço, e uma tensão emocional à enésima potência, fumo dezenas e dezenas de cigarros, bebo um pouco de café e, em geral, devo dizer que não é uma atividade muito saudável… Em compensação, escrever me faz muito feliz. Como medida antiestresse, è verdade que amo arrumar a casa, limpar os vidros, o chão, o banheiro… A primeira coisa que faço depois do café da manhã é me “jogar” na limpeza da casa, quase sempre com a música de Lady Gaga como trilha sonora. Limpar e cozinhar continuam sendo as minhas soluções para combater o estresse, até porque gosto muito da vida doméstica e familiar. Quanto a Lady Gaga, além do fato de que a sua música me diverte muito e me dá energia, creio que seja uma moça fora de série: determinada, inteligente e visionária, ela trouxe ironia e embaralhou o mundo “patinado” das estrelas do pop.
CI – Tudo passa (dizia o filósofo grego Panta Rei). O que é, para você, um índice de degrado social e cultural?
SA – Não podemos baixar a guarda. Devemos preservar as conquistas do passado, além de projetar-nos em direção do futuro. Temos que ter cuidado com a memória, ter em mente as batalhas que fizeram os nossos pais, os nossos avós, os nossos bisavós. Cada resultado é sempre precário: é sempre possível que qualquer direito conquistado, com suor e fadiga e dado por certo, seja rebaixado a algo provisório e duvidoso. A democracia é algo pela qual vale sempre lutar, estar atento, participar. O índice de degrado cultural, neste sentido, é a indiferença.
CI – O livro revela uma Toscana longe do cartão-postal das vitrines. O que lhe atrai em lugares como Piombino?
SA – Não amo os lugares adormecidos, dobrados ao cinismo e à riqueza. Pensei que Piombino pudesse se transformar numa metáfora das contradições do mundo moderno, na sinuca, entre a indústria e os desejos diferentes, entre o mar e o aço. Mas a Piombino que conto, na realidade, existe apenas em parte, porque no romance eu transfigurei esta realidade. A rua do meu livro, Stalingrado, não existe em nenhuma parte de Piombino, mas pulsa de vida em qualquer província e periferia — mesma aquela do Rio de Janeiro. Estes são lugares do mundo que mais me atraem, seja pela beleza humana que libertam, seja pelo empenho que todos nós devemos procurar para melhorar a vida das pessoas que ali habitam.