{mosimage}Criador do conceito de ócio criativo lança livro no Brasil e conclama os intelectuais tupiniquins a criarem um novo modelo cultural para um mundo mergulhado em uma profunda crise econômica e de valores
Do alto de seus 74 anos, Domenico De Masi transpira o entusiasmo e a voglia di fare ausente em muitos jovens do século XXI. O sociólogo, famoso no Brasil por conta da teoria do ócio criativo, esteve na cidade que mais ama, depois de Nápoles e Roma, para participar do Congresso Nacional de Inovação, Trabalho e Educação Corporativa, organizado no Rio pela Anitec, que também contou com a participação do pensador francês Pierre Lévy, no final de julho. Diante de um púbico extasiado, De Masi, com inconfundível carisma napolitano, demonstrou que sabe falar de assuntos tão sérios como a crise do modelo de vida ocidental sem deixar de arrancar risadas do público.
“O Brasil copiou por 450 anos o modelo europeu. Por 50 anos, o americano. E agora? O que vai copiar? Os intelectuais brasileiros, agora, têm o dever de criar um modelo autônomo de cultura”, lança aos pensadores do país que mais tem estado em evidência no mundo.
A “provocação” de De Masi estará em debate daqui a dois meses, em Paraty (RJ), de 31 de outubro a 2 de novembro, em um evento que reunirá intelectuais e artistas brasileiros, além de contar com a presença e a consultoria do escritor italiano, professor de Sociologia do Trabalho na Universidade La Sapienza.
Se o Brasil quiser ser um país de primeiro mundo, deve apostar, sobretudo, na produção de ideias, alerta. “A sociedade pós-industrial é marcada pela circulação de bens simbólicos. Possuir fábricas não equivale a estar no primeiro mundo, que é caracterizado por universidades, laboratórios de pesquisa e veículos de comunicação de qualidade. O destino do terceiro mundo é concentrar fábricas, mão-de-obra barata e matérias-primas”, analisa.
Em entrevista exclusiva, ele fala sobre o livro que acaba de ser lançado no Brasil, A Felicidade, além de um novo trabalho que deve ser publicado ainda em 2012, a crise na Itália e o Brasil como o lugar ideal para se viver a felicidade a partir do ócio criativo — conceito lançado por ele há 10 anos.
Comunità Italiana – O senhor presidiu a Fundação Ravello de 2002 a 2010, período em que foi proposto e construído o auditório projetado por Oscar Niemeyer, após muitas polêmicas. Atualmente, o teatro é palco de concertos do Ravello Festival, de julho a setembro, organizado pela Fundação. O senhor pode falar um pouco desse processo que levou alguns anos?
Domenico De Masi – A beleza local é medieval e colocar uma obra de arte contemporânea assim, revolucionária, exigiu seis anos de debate, discussões e autorizações. Foi um tempo necessário para superar todos os problemas burocráticos, o que é compreensível. Antes da construção, uma parte da cidade era entusiasta, outra era contrária, como sempre acontece quando surge uma obra de arte que revoluciona. Pensei que o start up fosse durar poucos meses, mas durou alguns anos. A inauguração aconteceu em janeiro de 2010 e, agora, finalmente acontecem muitos espetáculos no auditório, até porque houve um acordo entre o Comune de Ravello e a organização do festival. A coisa mais interessante é que a cada dia, dezenas de turistas visitam o monumento, que virou uma atração turística de qualidade. Ravello tem a sua estratégia de marketing no turismo cultural e realiza o festival de julho a setembro. A partir deste ano, acontecem concertos durante o inverno. Aos poucos, o local é valorizado em modo fisiológico.
CI – Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre a felicidade?
DM – O livro nasceu porque um banco italiano me pediu para fazer um livro com fotografias. Então, escolhi Oliviero Toscani, o fotógrafo italiano mais famoso, que fez campanhas para a Benetton. Ele sempre faz fotos muito figurativas. No entanto, eu afirmei que a felicidade é uma coisa abstrata, não concreta. Oliviero, pela primeira vez, fez fotos abstratas. Pensei também no livro de maneira pontual, feito “em pontos”. Peguei pensamentos de grandes pensadores ocidentais e depois coloquei a minha parte.
A primeira parte ilustra a história da felicidade, reunindo conceitos de gregos, romanos, da Idade Média cristã, do iluminismo, do renascimento, do barroco e da modernidade. Na segunda parte, estão os fatores que influenciam a felicidade, como o tempo, o espaço, a riqueza, a beleza. Depois, estão os seus amigos e inimigos, como as viagens e o tempo. Enfim, concluo que a felicidade não é um direito, mas um dever.
Não pretende ser um tratado sobre a felicidade, é um livro-jogo, quase uma brincadeira entre mim e Oliviero. Cria um desafio a ele no plano fotográfico e a mim no plano dos conceitos. Deve ser lido em ócio criativo, não em uma situação muito atenta como um tratado.
CI – Como definir felicidade?
DM – Eu cheguei à conclusão de que não existe uma felicidade permanente, como não existe uma dor permanente. Existem momentos felizes e momentos de dor. O conceito de felicidade muda muito de acordo com o tempo: alguns apostam no que existe neste mundo, e outros no que existe além deste mundo. E a situação atual da sociedade industrial e pós-industrial conferiu à felicidade uma visão consumista: ela depende daquilo que eu compro, e não daquilo que eu sou. Há uma necessidade de retomar uma centralidade humana em relação ao conceito de felicidade. Tal centralidade seria melhor tratar em um outro livro (que provavelmente eu não farei), no qual se trate do assunto sob o ponto de vista dos grandes pensadores orientais, ou seja, a felicidade de acordo com o hinduísmo, o confucionismo e o budismo, correntes para as quais a felicidade está no centro da especulação filosófica.
CI – O Brasil é citado no livro como o local ideal para viver a felicidade, como já havia sido citado pelo senhor como país aconselhado para exercitar o ócio criativo. E agora que o país vive um boom econômico?
DM – Agora é perigoso. A felicidade não é de ricos ou de pobres. Quando um país fica rico, há o risco que enriqueça à moda norte-americana, e então a felicidade fica ligada ao consumismo. E sabemos que isto não é verdade.
CI – O senhor está escrevendo algum livro no momento?
DM – Estou escrevendo um livro que vou mandar para o meu editor ainda este mês, sobre o modelo brasileiro, que será breve como O Ócio Criativo, e procurará responder à pergunta: onde é melhor viver hoje? Todos nós nos colocamos essa pergunta, é melhor viver na Itália ou Brasil, em Nova York ou em Tóquio, em Milão ou em Roma? A obra pretende analisar os modelos de vida de hoje, chegando à conclusão de que o melhor modelo de vida neste momento é o brasileiro. Nele, analiso os principais modelos existentes, com seus prós e contras: o confucionismo da China, o budismo da Índia, o xintoísmo do Japão, o islamismo nos países muçulmanos, a Suécia, a Noruega, a Inglaterra, a Europa mediterrânea, os Estados Unidos, o Brasil. Não é que seja o paraíso, mas o brasileiro é o menos pior. Alguns países estão em desenvolvimento e outros em decrescimento. Alguns países em crescimento são democracias, enquanto outros não o são. O Brasil é uma democracia. Substancial, não em tudo, pois não existe um local onde a democracia seja total. O Brasil não é homogêneo, é variado, há coisas terríveis e coisas maravilhosas. As universidades brasileiras, públicas e privadas, são melhores do que as italianas. Há uma injustiça social terrível entre ricos e pobres, mas é uma democracia, enquanto a China não o é; a Índia é uma falsa democracia, pois a família Nehru-Gandhi exerce o poder há 47 anos; e, no mundo islâmico, há um extremismo religioso inexistente no Brasil.
O país praticamente não tem conflitos com os países vizinhos, abriga 42 etnias onde há uma convivência pacífica, diferente do que acontece na Índia entre cristãos, budistas e hinduístas. Não é um modelo perfeito, mas é o único onde as distâncias sociais, em vez de aumentarem, diminuem.
CI – Por que a Itália chegou à crise atual?
DM – A Itália foi um dos primeiros países do mundo a se transformar de industrial a pós-industrial: ou seja, a indústria continuou importante, porém a economia se baseou na produção de informações, valores, símbolos, estética. O design italiano, a moda, a gastronomia, o vinho e tudo que tem a ver com o bem-estar exemplificam isso. Em nossa estrutura social, a classe média é mais numerosa do que no Brasil. Mas tivemos por quase 20 anos Berlusconi no poder, o que foi uma tragédia sob todos os pontos de vista. Houve uma queda de valores, um empurrão forte ao consumismo, a política foi considerada secundária, a economia devorou a política, as finanças devoraram a economia, agora as agências de rating estão devorando as finanças. Temos uma progressiva redução do crescimento do PIB, que crescia 6 pontos nos anos 1950 e chegou a -2 este ano. Tivemos um decrescimento permanente e não percebemos isso, pois a nossa renda per capita ainda é alta, de US$ 31 mil, enquanto o índice brasileiro é de US$ 8 mil. Tínhamos uma distribuição de renda forte, mas no governo Berlusconi se enfraqueceu. Neste momento, 10 pessoas na Itália têm a renda de 3 milhões de pobres. Nós não éramos assim.
Os políticos não são capazes de resolver o problema que criaram. Hoje, temos um governo técnico, mas são técnicos que tomam decisões políticas. Decidem como deve ser organizada a escola, a televisão, como será distribuído o welfare. Este é o governo mais à direita que temos na Itália nos últimos 50 anos, mas é uma direita equilibrada: é a primeira vez que temos uma direita não fascista nem populista, embora se sustente com o apoio da esquerda. É um governo que pode reparar os problemas, mas não dará um empurrão ao país, que deve ser econômico e moral. O importante para um país não é ter riqueza, e sim um entusiasmo e uma coesão que levam a produzir e distribuir.
O Brasil teve a sorte de ter tido uma sequência muito positiva: o governo Fernando Henrique saldou a economia e acumulou riqueza, e o de Lula a distribuiu. Problema seria se primeiro tivesse vindo Lula, e depois FHC. A Itália, por sua vez, não produz nem distribui.
CI – O senhor fala em crise de valores e a necessidade de se inventar um novo paradigma…
DM – O comunismo sabia distribuir a riqueza, mas não sabia produzir, enquanto o capitalismo sabe produzir, mas não distribuir. O comunismo perdeu, mas o capitalismo não venceu. Não somos capazes de criar um novo modelo de vida. Não apenas de desenvolvimento, mas de vida. Estamos cada vez mais desorientados. Não entendemos mais o que é bonito e o que não é; não entendemos o que é vida ou é morte; na política, o que é esquerda ou direita; não sabemos mais o que é uma família. Mas o budismo foi criado em uma fase de grande desorientação na Índia, o confucionismo, na mesma situação na China. O cristianismo foi difundido na crise da civilização romana, o welfare durante uma crise do capitalismo. Então, este é o momento de se criar um modelo novo de vida que saiba pegar o positivo das diversas experiências mundiais e eliminar os negativos.
CI – Onde esse novo modelo para o mundo pode surgir?
DM – Acho que do Brasil, onde não há um excesso de presença religiosa como o Islão ou o Vaticano na Itália, de presença militar como nos Estados Unidos e China, ou do Estado como na China e Rússia. O país apresenta uma situação interessante. E o que falta no Brasil? Falta um forte empenho da parte dos intelectuais brasileiros para transformar a experiência em modelo, como fizeram os iluministas na França no século XVIII, que usaram a experiência negativa da monarquia absolutista para elaborar um modelo positivo de democracia, liberdade e igualdade. Acho que nem os intelectuais europeus nem os americanos são capazes de fazer isso, pois a situação de grande crise os impede de olhar o futuro como uma programação equilibrada. Mas me parece que os intelectuais brasileiros não têm consciência de que o país, neste momento, tem este dever: o de propor um modelo seu, que seja vencedor, para o mundo.
CI – A ascensão econômica brasileira não segue o modelo americano?
DM – Quando vim aqui pela primeira vez, há cerca de 30, 20 anos, a Itália vivia um estado de euforia, e o Brasil, de depressão. Hoje é o contrário. Estamos deprimidos porque erramos, apostamos tudo no materialismo e no consumismo. Se um arqueólogo, daqui a dois mil anos, encontrar nossos anúncios publicitários, pensará que éramos um povo de famintos, porque a publicidade na Europa é sobretudo para vender batatas fritas e papel higiênico. O perigo é justamente viver um crescimento econômico após as experiências europeia e norte-americana. Não podem repetir os mesmos erros. Quando o progresso econômico e tecnológico não é paralelo ao progresso cultural e intelectual, se criam disfunções enormes, que podem levar até ao fascismo. Na Itália, 20% dos votos vão a Beppe Grillo, que não tem um programa. Ele apenas protesta, não tem proposta. É populismo em estado puro. E se pode cair no populismo, seja por pobreza, seja por progresso.
Por sua vez, agora, o Brasil tem crescimento moderado, com um PIB de 2,7, até porque não existem grandes investimentos. É um absurdo, por exemplo, que a viagem entre Rio e São Paulo seja feita de avião, que consome, polui e é perigoso. Um trajeto de 500 quilômetros se pode fazer em duas horas de trem, como Milão-Roma.
CI – Apesar de tudo, a Itália vai sair da crise?
DM – Creio que sim. Mas quando falo de crescimento, falo do ponto de vista moral, de felicidade, mesmo reduzindo a renda. As pesquisas mostram que, quando supera a renda per capita supera os US$ 15 mil dólares, a felicidade não cresce junto. Estamos em uma fase total de mudança de modelo econômico mundial. Alguns países enriqueceram às custas do resto do mundo, sobretudo de ex-colônias como China, Índia, Brasil, Chile etc. Pela primeira vez na história moderna, esses países não estão mais dispostos a se deixarem roubar. Não é mais possível que os países ricos continuem a crescer. Se o petróleo é finito, há cada vez menos na Terra, como é possível um italiano pagar o mesmo preço pela gasolina da época em que na China não havia quase automóveis? Não podemos repetir a ideia de crescimento infinito, não existe crescimento infinito em um mundo finito, c’è poco da fare. Então, quando digo que podemos sair da crise, digo para reduzir o PIB e aumentar a qualidade de vida. Sair da crise não é aumentar a renda, como acreditam o premier italiano e o Obama. E esse é o perigo no qual o Brasil pode cair. Acreditar na ilusão de que é preciso crescer até o infinito em vez de distribuir ao infinito, são duas coisas diferentes.