{mosimage}O psiquiatra italiano Franco Basaglia e sua filosofia antimanicomial, baseada na arte como terapia, influenciou a revolução psiquiátrica no Brasil
Expressar sentimentos através das pinceladas em um quadro ou por meio dos traçados de um desenho é uma forma de terapia. Colocar o lado criativo para funcionar pode ajudar no tratamento de problemas crônicos e distúrbios psicológicos. O mundo moderno, individualista, competitivo e violento faz com que muitas pessoas desenvolvam doenças como depressão e síndrome do pânico. As situações-limite que os italianos têm enfrentado, a exemplo da crise econômica e de catástrofes como terremotos, contribuem para abalar o equilíbrio emocional. Para auxiliar no tratamento desses traumas, é empregada a arteterapia. O psiquiatra italiano Franco Basaglia foi o grande incentivador e divulgador desse método antimanicomial.
Basaglia, no campo das relações entre a sociedade e a loucura, assumia uma posição crítica com relação à psiquiatria hospitalar devido ao isolamento do doente através da internação e dos eletrochoques. Inspirado na obra do filósofo francês Michel Foucault, História da Loucura na Idade Clássica, o italiano formulou a “negação da psiquiatria” como discurso e prática. Ele via a necessidade de utilizar a arte como coadjuvante no tratamento de doenças físicas e emocionais. Fundadora da clínica Pomar, especializada em arteterapia, no Rio de Janeiro, Angela Phillipini, ressalta que o trabalho realizado na instituição tem influência junguiana, baseada no autoconhecimento. A psicóloga ítalo-brasileira também ressalta que absorveu muitas das ideias de Basaglia em seu trabalho.
— A União Europeia tem um consórcio de países que, a cada dois anos, organiza um grande congresso sobre arteterapia. O último aconteceu em setembro do ano passado, na cidade de Lucca. A Inteligência do Coração foi o tema do congresso. Franco Basaglia foi lembrado, por ser o responsável pela reforma psiquiátrica na Itália. Essa revolução começou no hospital de Trieste, onde ele promoveu a substituição do tratamento hospitalar e manicomial por uma rede territorial de atendimento, da qual faziam parte cooperativas de trabalho, ateliês de arte, centros de cultura e lazer, oficinas de geração de renda e residências assistidas — lembra.
A forte influência de Basaglia na psiquiatria do Brasil
Angela Phillipini afirma que as ideias do psiquiatra italiano tiveram reflexos nas políticas públicas brasileiras, como a construção dos CAP’s — Centros de Atenção Psicossocial. Basaglia, que veio ao Brasil pela primeira vez em 1978, retornou no ano seguinte, quando fez uma visita ao Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, um dos mais cruéis manicômios brasileiros. Ali, Basaglia comparou o estado dos doentes e a estrutura do local a um campo de concentração, reforçando as denúncias de maus-tratos e violência. Sua presença em terras tupiniquins deu origem ao documentário do cineasta Helvécio Ratton, Em nome da razão, de 1980, um marco na luta antimanicomial brasileira. Angela Phillipini acrescentou que Basaglia revolucionou o tratamento dos “loucos”, propondo a criação, na Itália, da lei 180.
— Em 13 de maio de 1978, foi instituída a lei 180, de autoria de Basaglia. Não apenas proíbe a recuperação dos velhos manicômios e a construção de novos, como também reorganiza os recursos para a rede de cuidados psiquiátricos, restitui os direitos sociais dos doentes e garante o direito ao tratamento psiquiátrico qualificado — explica a psicóloga.
Basaglia também influenciou a reforma psiquiátrica do hospital de Santos, em 1989. Após uma série de mortes na Casa de Saúde Anchieta, conveniada ao extinto Inamps, a prefeitura decidiu intervir e desapropriá-la, iniciando um trabalho semelhante àquele que Franco fez na Itália. Na cidade, foram implantados os núcleos de atenção psicossocial (Naps), abertos 24 horas por dia. Foram criadas também oficinas de trabalho para geração de renda dos ex-internos e diversos projetos culturais de inserção social, como a Rádio e a TV Tam Tam.
Base na teoria junguiana do autoconhecimento
Em arteterapia, o trabalho clínico desenvolve-se em um ponto de inserção entre artes, educação e saúde, de forma interdisciplinar. Seja através da teoria do autoconhecimento de Jung, seja através da filosofia antimanicomial de Basaglia, muitos que praticam a arteterapia defendem que o exercício de criação ativa várias áreas do cérebro para compreender cores, contrastes e formas. Além disso, o ato de criar proporciona entusiasmo. De acordo com a professora de História Maria Luiza Cristófaro, que frequenta cursos ministrados na clínica Pomar, a arteterapia é um meio com o qual a pessoa tem muitos insights, o que contribui para que ela possa organizar seus pensamentos e amenizar aflições e ansiedades.
— Não há uma bula para interpretar formas e cores na arteterapia. A pessoa exterioriza, através da pintura, escultura, colagem e reciclagem, o que está em seu subconsciente. Saber decifrar o que a imagem quer dizer é importante, mas essa interpretação é mediada pelo terapeuta. Outra coisa essencial é olhar o cotidiano de uma forma diferente. As pessoas normalmente têm um olhar padronizado, direcionado a formas aceitas. Por isso, é bom sair desse olhar conformado — ressalta Maria Luiza.
Há várias publicações sobre o assunto, mas não há um estudo controlado para saber se a técnica traz, de fato, efeitos positivos. Muitos psiquiatras e outros médicos afirmam que é necessário testar um grupo composto por pacientes com os mesmos tipos de diagnóstico e tratamento para fazer a comparação e ver se realmente a terapia com arte tem resultados significativos. A psicóloga Sayuri Pauli acredita que a arteterapia está relacionada com a construção de uma auto-imagem, que ajuda o terapeuta a colher dados sobre o paciente.
— Hoje, já falamos em medicina integrativa, um termo mais amplo do que complementar. Uma vez comprovada a eficácia dessas técnicas, chamadas alternativas, elas deixam de ser “paralelas” e entram no arsenal de tratamentos. Quando estava prestes a me formar em Psicologia, não sabia que corrente seguir, se a psicanálise ou a Gestalt. Depois, descobri a arteterapia. Ela funciona como uma ferramenta para enriquecer a coleta de dados do seu paciente. O terapeuta dizer o que você tem é como fazer uma projeção do outro, por isso eu acho que o psicólogo é apenas um facilitador do processo. Na verdade, é o próprio paciente que deve se encontrar através das imagens produzidas — enfatizou a psicóloga.
A clínica Pomar segue a teoria de Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica. Jung foi a grande referência para a médica brasileira Nise da Silveira. A psiquiatra foi responsável pela introdução da arteterapia no Brasil e fundou o Museu das Imagens do Inconsciente, localizado no Hospital Pedro II, no Rio de Janeiro, onde há um acervo de obras de seus pacientes. Na terapia junguiana, que explora os sonhos e as fantasias, um diálogo é estabelecido entre a mente consciente e os conteúdos do inconsciente. Segundo a agente administrativa do Ministério da Saúde e aluna da clínica, Lídia de Jesus, Jung usou como objeto de estudo ele mesmo, para mostrar às pessoas como elas podem atingir o autoconhecimento para viver melhor.
— Segundo a teoria junguiana, o autoconhecimento ajuda a minimizar os conflitos internos e as relações sociais. A ideia de Jung é chegar à individuação, o ser não dividido. Ele ficou 50 anos pesquisando e produzindo imagens para ter a descoberta do eu, conforme diz a música do Milton Nascimento, Caçador de Mim. A gente acha que se vê como num espelho, mas, na verdade, somos tão desconhecidos de nós mesmos… Por isso, a arteterapia é importante, para tirarmos o véu do que está encoberto em nossa memória, sejam histórias tristes de família, sejam traumas de infância, dentre outros problemas — conclui Lídia.