Uma enigmática livraria

Situada no místico bairro Esquilino, loja revela histórias de arrepiar os pelos de romanos e turistas
Conheci a libraria delle occasioni meio por acaso. Algo me atraiu àquela antiga livraria em horário tardio, embora ainda estivesse aberta, na rua Merulana, em Roma. A loja fica próximo ao prédio onde, ainda criança, eu acompanhava meu pai quando ele trabalhava no sindicato. A casualidade das circunstâncias com sabor de destino parecia para mim — um expatriado que não voltava há muito tempo à sua cidade natal — um sinal de que algo estava à minha espera. “Maktub”, diriam os árabes, ou seja, algo tinha que acontecer. Fiquei olhando os livros na vitrine. Reparei que os textos eram sobre espiritismo, teosofia, budismo, hinduísmo e magia. Sentia o impulso de entrar na loja, mas algo quase me levava embora, até que a porta da livraria se abriu e apareceu uma moça que, sorrindo, me cumprimentou. Seduzido pela loja e pela cortesia da bella italiana, resolvi entrar para perguntar se na livraria havia textos sobre mudrás. Entrei. Percebi o lugar realmente peculiar. Vibrava de energia. Magnética, ela disse que não tinha nenhum livro sobre a ântica técnica de reflexologia das mãos da Índia, mas aproveitei para perguntar sobre o misterioso lugar.
— Sim, é realmente uma livraria diferente. Foi fundada em 1941 por Amedeo Rotondi, um homem muito singular. É a mais antiga livraria esotérica italiana, especializada em espiritualidade, esoterismo, Oriente, com livros antigos e raros — revela Barbara Rotondi, sobrinha-neta de Amedeo (nascido em 27 de outubro de 1908 e morto em Roma, em 11 outubro de 1999).
Ela me conta que, depois de ter tido experiências mediúnicas em um trágico momento na Segunda Guerra Mundial, ele dedicou a própria existência para conhecer a si mesmo através de uma busca sincrética espiritual que o levou não só a fundar a “livraria das ocasiões”, melhor conhecida como Libreria Rotondi, mas a ser um voluntário do amor pela vida.
— Ele usava por isso mesmo o pseudônimo de Voldben, ou seja, a contração das duas palavras, voluntário do bem — prosseguia Barbara.
O fato de sido tombada como patrimônio cultural da cidade pela prefeitura de Roma acendeu definitivamente em mim a vontade de fazer uma matéria sobre a livraria. Logo perguntei se seria possível fazer uma matéria.
— Sim, claro. Ligue amanhã e fale com Aldo, meu pai, ou com Francesco, meu primo — disse Barbara.
Não conheci Francesco, mas Aldo Rotondi estava na livraria á minha espera para a entrevista marcada dias antes.
— Ah! Você é o repórter que falou com Francesco — exclama Aldo com a mesma cortesia que vi em Barbara, sua filha.
O lugar parecia ainda mais transcendental.
— Aqui meu tio se encontrava com outros praticantes. Amedeo frequentou também o mundo da mediunidade e do espiritismo. Fazia sessões espíritas com sua esposa Anna Maria e Vera, a filha. Nos anos 70, ele frequentava o Cerchio Firenze 77, onde era considerado um representante importante dos famosos encontros que frequentava assiduamente — revela Aldo.
O Cerchio 77, com o médium Roberto Setti, foi uma das mais importantes experiências parapsicológicas coletivas da Itália, que ainda tem profundas raízes no país.
O militar da reserva que escapou dos nazifascistas através de uma experiência mística
Fico ainda mais curioso ao ouvir a história deste homem que construiu a sua espiritualidade em cima da própria experiência e assimilou elementos culturais de civilizações milenares, como o hinduísmo, o budismo, o cristianismo e o islamismo. Foi um precursor de uma época futura, pois, naqueles tempos, o preconceito sobre certos assuntos era muito grande. O sobrinho me explica então o fenômeno que mudou tudo na vida do tio:
— Depois do armistício, Amedeo, oficial militar da reserva, foi chamado de volta ao serviço, mas não quis aderir à república nazifascista, e se deu a fuga na mata em volta de Vicovaro. Uma vez se refugiou em uma casa abandonada. Os soldados alemães estavam na área procurando desertores e partigiani. Ele tinha que fugir dali. Não sabia onde estavam os soldados. Estava com medo, mas, de repente, surgiu uma cadeia de glóbulos luminosos flutuando no ar. Tomado pelo fenômeno, Amedeo sentiu que deveria segui-la por um caminho diferente que ele teria feito, onde realmente havia uma blitz alemã. Foi assim que meu tio evitou ser capturado — conta com toda a naturalidade Aldo.
Rotondi colaborou com a resistência contra os alemães, mas o fenômeno tinha marcado definitivamente a vida do italiano, que começou a estudar religiões remotas e, ao mesmo tempo, sentia o chamado espírita. Em cima deste patrimônio humano e cultural do Amedeo, a livraria em via Merulana, que tinha passado também por perseguições da época fascista, se tornou uma referência para todos os leitores de teosofia, esoterismo e religiões. Aldo Rotondi conversa sentado, em meio a uma multidão de livros que parecem subir ao céu em uma espiral sobre as prateleiras de madeira antiga. Aldo mostra exemplares de 1500, mas também velhos cartões-postais, fotos, desenhos de uma vida remota e humana. Na livraria se sente a presença do seu fundador, mas hoje também de Aldo, Barbara e Francesco, os quais mantiveram viva a mensagem de amor do Amedeo.
— Não. Ele não escrevia em estado de transe. Os seus livros eram meditados, estudados e escritos. Ele era professor. Tinha uma grande capacidade de comunicação, apesar de ter começado a escrever aos 60 anos, mas tendo como objetivo a divulgação do amor universal — acrescenta Aldo, revelando o grande intuito do homem que considerava a meditação uma prática basilar para se conectar com o invisível dentro de nós.
Muitas vezes, quando entravam os clientes, já sabia qual era o assunto deles.
— Ele tinha capacidade de conhecer uma pessoa sem tê-la encontrado antes. Aos clientes sugeria títulos de livros, mas se recusava também a dá-los, quando observava nele algo que mostrava o despreparo para ler — afirma Aldo, para quem o tio não era um verdadeiro médium, mas vivia com as energias de um mundo que existe, embora ignorado na vida material dos homens.
O resultado desta discrepância tem como consequência a falta de amor entre as pessoas que carregam um vazio interior que nenhum ego do universo jamais conseguiria preenchê-lo.
O “vazio”, dizia Acharya Rajneesh, é já uma presença de algo dentro de nós. Um vazio que poderia abrir portas desconhecidas se alguém o desejasse. Esta porta conduz ao amor universal, aquele que não quer nada em troca e que foi a força de Amedeo que, além de ser escritor, filósofo e editor, foi um homem que professou o bem desinteressado na vida.
A atmosfera do bairro Esquilino aumenta o mistério em torno da livraria
A magia da Libreria Rotondi se confunde com a do bairro Esquilino.
— O bairro é cheio de lugares mágicos e esotéricos. Aqui próximo está o museu Nacional de Arte Oriental, o antigo mitreo romano (santuário dedicado ao culto do deus Mitra), sob a basílica de São Clemente, sem falar na famosa Porta Mágica, na Piazza Vittorio —– observa Aldo.
Dizem que quem descobrir a fórmula alquímica escrita na efígie das ruínas da antiga Porta Mágica obterá a fórmula do ouro. Na livraria fica um subterrâneo que serve de armazém para os livros, mas é muito mais que isso.
— Faça atenção aos degraus. Uma vez Amedeo caiu desta escada, mas uma presença misteriosa o segurou e impediu que ele se machucasse — conta, abrindo o misterioso bueiro que conduz à cripta da “livraria das ocasiões”.
Sugestivo e remoto, o lugar parece um mitreo. Está cheio de velhos livros, fotos e pinturas arcanas que parecem traçados em estado de transe.
— Nós temos uns 25 mil títulos catalogados em nosso site, mas muitos livros estão ainda aqui para serem catalogados — afirma Aldo, acrescentando que a maioria dos clientes é composta por adultos, mas que ultimamente muitos jovens têm se interessado por magia e fórmulas alquímicas. Enquanto ele falava, fiquei olhando para um pequeno livro azul no meio de outros, escrito por Amedeo Rotondi.
— Este livrinho? Nós o doamos para todos que o pedem. Ele quis isso. São escritos sobre as práticas para os voluntários do bem. O livrinho é uma síntese dos pensamentos dele — diz Aldo.
I volontari del Bene é um dos 26 livros escritos pelo criador da livraria. Fico sabendo que Rotondi também foi editor, além de fundar e dirigir Il Corriere Libraio, um periódico mensal especializado. Ele era chamado com frequência à TV para dar conferências sobre assuntos ligados à espiritualidade e à mediunidade. Sua voz — gravada no site da livraria www.libreriarotondi.it — está viva. Explica com simplicidade difíceis conceitos místico-religiosos. Seus livros são traduzidos em vários idiomas.
— Enviamos um livro do tio traduzido para o português a São Paulo. Mandamos também livros para o Japão, a Colômbia, a França, e a muitos outros lugares do mundo — afirma Aldo, doando-me um livrinho azul do tio iluminado.