Os oito tipos de escravidão e as oito batalhas travadas pela humanidade para derrotá-las
Todos sabem que, nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do XX, a grande cidade de Viena de Maria Teresa e Francisco José representou a vanguarda em termos de pintura, com Klimt; de literatura, com Musil; de música, com Mahler; e de psicologia, com Freud. Mas poucos sabem que aquela Viena foi grande principalmente porque concretizou o máximo dos anseios humanos ao representar “a idade de ouro da segurança”, como a definiu Stefan Zweig, o grande escritor austríaco falecido em Petrópolis em 1942.
O Parlamento garantia os direitos dos cidadãos, a moeda era estável, “cada um sabia quanto tinha ou quanto iria receber, um peso e uma medida certos”. Toda família sabia antes quanto podia gastar em alimentação, moradia, lazer e obrigações sociais. Todo recém-nascido ganhava um cofrinho e um seguro. Ninguém tinha medo de guerras, revoluções, ou mesmo de um mínimo ato de violência. Salários regulares, aposentadorias e seguro doença garantiam a tranquilidade até do proletariado. A vida, entendida com austeridade e modéstia, podia contar com um progresso irrefreável, permitido pela ciência e pela técnica.
Infelizmente, como todos sabemos, a Primeira Guerra Mundial despedaçou este grande sonho austríaco, da segurança absoluta, transformando-o no pesadelo de um “apocalipse feliz”.
Desde o início dos tempos, a humanidade como um todo, e cada indivíduo por sua conta, combateram oito batalhas para libertar-se do mesmo número de tipos de escravidão: a escravidão da miséria, da fadiga, da violência, da ignorância, da tradição, da dor, da feiúra e da morte.
Cada um destes tipos de escravidão gera insegurança e, a mais inevitável de todas — a da morte — desperta em nós até o pânico. Cada tipo advém de causas reais, mas a mídia pode exagerar em modo artificial algumas, ou pode acrescentar outras em surdina, criando falsos temores e oferecendo falsas soluções. Por exemplo, andar nas ruas de Roma, de Milão e até de Nápoles e Palermo é muito menos perigoso que andar pelas ruas de New York, Boston, São Paulo ou Moscou. Mesmo assim, no imaginário coletivo atiçado com esperteza pelos programas de auditório, o matricídio de uma garota da Puglia, o infanticídio de uma mãe do Piemonte ou o homicídio de um jovem da Calábria acabam insinuando a suspeita de que, em toda filha, mãe ou namorado, possa se esconder um potencial assassino doméstico.
A insistência da mídia, que amplifica o efeito de cada estupro ou assalto, criou, nos cidadãos, uma psicose cada vez mais soturna, dando de bandeja para os prefeitos, até de cidades tranquilas, o pretexto para perseguir inócuos trabalhadores na dissimulada intenção de prender não tanto os marginais quanto o voto de suas vítimas em potencial.
Mas, por sorte nossa, os seres humanos, dos quais fazemos parte, tendem tanto a terem um medo induzido pela insegurança, como também uma felicidade causada pela certeza de viverem em segurança. Por isso, para vencer o cansaço, inventamos máquinas cada vez mais potentes, amigáveis e inteligentes. Para derrotar a ignorância, criamos sistemas de aculturação sempre mais eficazes e capilares. Para derrotar a dor, inventamos remédios e psicanalistas. Para derrotar a feiúra, inventamos a cirurgia plástica e os cosméticos. Para derrotar a violência, inventamos a ordem pública e a boa educação. Para derrotar a pobreza, inventamos a produção em massa, o bem-estar e a caridade. Para exorcizar a morte, criamos a ilusão da eternidade, oferecida pela arte e pela religião. Não podemos afirmar que ganhamos de uma vez por todas nossa guerra contra a insegurança, mas temos que reconhecer que, em comparação aos nossos antepassados, conseguimos muitos progressos.
Numa escala das exigências humanas, a segurança ocupa um dos primeiríssimos lugares, ao lado das necessidades físicas do ar, do sono, da comida, muito antes das necessidades de sociabilidade, prestígio e autorrealização. Para satisfazer uma necessidade tão imperiosa, não é suficiente trancafiar-se em casa ou confiar no policial do bairro: precisa-se estar convencido de que o nosso, mesmo que não seja o melhor dos mundos possíveis, afinal, ainda é o melhor dos mundos que existiram até agora.