Conheça a história do advogado palermitano que realiza projetos sociais, ajudou na obtenção de milhares de cidadanias italianas e até compete na esgrima e no florete pelo país
Corria o ano de 1997. Numa sexta-feira, em meio às preocupações de mais um dia agitado de trabalho em seu escritório, então localizado na Rua Joaquim Floriano, no bairro do Itaim, em São Paulo, o advogado Giacomo Guarnera recebeu em sua sala a madre italiana Elvira Petrozzi, que, indicada por um amigo, o havia procurado com o objetivo de fundar no Brasil uma associação para recuperar meninos de rua, semelhante ao trabalho que ela já realizava na Europa com toxicodependentes. Como já morava no país há oito anos e por conhecer bem os caminhos para a abertura de empresas, Giacomo começou a explicar à madre o que era preciso fazer, de quais documentos necessitava e quais seriam os passos a percorrer, além, é claro, de informar sobre a necessidade de se ter recursos para bancar a instituição. Entre uma explanação e outra, Giacomo disse à madre que, para facilitar as coisas, era necessário ter um responsável pela instituição que morasse no Brasil. Ele mal conseguiu finalizar suas explicações, quando ela o interrompeu e disse:
— Você é essa pessoa. Você tem fé? O resto eu coloco. Essa é uma obra de Deus. Não se preocupe. Se Deus quiser, os recursos virão.
A fala da madre foi tão resoluta que, claro, Giacomo não teve como negar a missão. Assim nasceu a Associação São Lourenço, situada na cidade de Mogi das Cruzes, a cerca de 60 km da capital. O advogado logo se tornou seu primeiro presidente. De início, cuidou de todos os documentos necessários para formalizar a instituição e foi o responsável, entre tantas outras tarefas, pela compra do terreno, pelo recebimento das primeiras doações, respeitando, claro, as regras legais brasileiras, pela preparação das normas para recebimento da guarda de crianças abandonadas, por organizar os vistos dos missionários italianos e estrangeiros que ali trabalhariam e por formar a equipe que pudesse cuidar da organização da entidade.
A Associação é ligada à Comunità Cenacolo, que, ainda hoje conduzida por madre Elvira (embora ela esteja muito doente), tem entidades beneficentes em 12 países da Europa, em cinco nas Américas e em um na África. Esse trabalho social é tão importante que, em 2008, a Cenacolo foi reconhecida pelo Vaticano como “associação internacional de leigos”.
— Madre Elvira tinha toda a razão. Há 18 anos que eu vejo os recursos chegarem à Associação em forma de dinheiro, médicos e comida. Hoje, ela atende cerca de 80 crianças e adolescentes em situação de risco — conta Giacomo à Comunità.
Essa preocupação com as questões sociais não é apenas uma marca pessoal do advogado Giacomo Guarnera. Está presente também no DNA do seu escritório, o Guarnera Advogados, que reúne cerca de 40 profissionais em São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza.
— Além da casa de Mogi das Cruzes, colaboramos com a Associação São Lourenço de Jaú, também em São Paulo, e de Catu, na Bahia. Temos um trabalho com a Abbà Brasile e com as Associações Cristãs dos Trabalhadores Italianos, ambas em São Paulo. Acredito ser importante fazer esse trabalho social – comenta Guarnera.
Parmesão, panceta e marsala no jantar especial para os pais da namorada brasileira
Nascido em Palermo há 53 anos, Giacomo fez o curso de Direito na Facoltà di Giurisprudenza da bela capital da Sicília. Antes do último ano, aos 23 anos, começou a estagiar em um escritório de advocacia especializado em relações comerciais entre Itália e Alemanha. Em 1985, formou-se. Depois, por conta desse trabalho, Giacomo fez um curso de Direito em Munique, na Alemanha. A seguir, entre julho e agosto de 1987, ganhou duas bolsas de estudo: uma em Kiel, também na Alemanha, e outra em Klagenfurt, na Áustria. Em agosto de 1988, Giacomo teve um daqueles encontros que mudam os rumos da vida. Em Ratzenried, perto da cidade de Lindau, uma ilha localizada no lago Constança, entre Alemanha, Suíça e Áustria, o palermitano conheceu a paulista Ana Luiza Rossi, também advogada e formada na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Aos poucos, entre uma conversa e outra sobre Direito e debates sobre música brasileira, os dois começaram a namorar.
— Sempre gostei de música brasileira. Como eu tinha um violão, às vezes, cantava para Ana Luiza algumas canções, como Garota de Ipanema, de Tom Jobim; Aquarela do Brasil, de Ary Barroso; e Aquarela, do Toquinho. Nessa mesma época, ela me apresentou a cantora Gal Gosta, que eu não conhecia — lembra Giacomo.
Em setembro de 1988, Giacomo desembarcou no Brasil pela primeira vez. Primeiro, passou pelo Rio de Janeiro, onde participou de um congresso sobre Direito. Depois, foi para São Paulo, onde tinha um compromisso dos mais importantes: preparar um jantar para os pais de Ana Luiza.
— Não tive dúvidas. Na mala, trouxe quatro ingredientes especiais: a massa, o parmesão, a panceta e um pouco de marsala para preparar um espaguete à carbonara e um escalope à marsala. Acho que eles gostaram. Naquele ano, descobri essa maravilha chamada Brasil.
Naquele ano, o siciliano adotou o Brasil como sua segunda pátria. Para quem não lembra ou não viveu aquele final da década de 1980, é bom saber que aquele período foi um dos mais turbulentos da história política do Brasil. Em 1989, por exemplo, o país viveu a expectativa da primeira eleição presidencial direta desde a década de 1960. No segundo turno, o Brasil dividiu-se entre Lula e Collor, que, por fim, foi eleito presidente. Nesse período, Giacomo e Ana Luiza foram e voltaram da Itália algumas vezes.
— Havíamos decidido nos casar. Mas não sabíamos exatamente onde morar. Se o Lula ganhasse, ficaríamos na Itália. Se desse Collor, no Brasil. Foi o que aconteceu. Até que nos casamos em 16 de abril de 1990 — afirma.
Dez mil cidadanias italianas feitas em SP, RJ, Porto Alegre e Curitiba
A essa altura, com a experiência que havia acumulado na Itália e na Alemanha em relação ao Direito Comercial, Giacomo passou a ser procurado em São Paulo por vários empresários italianos que tinham dúvidas sobre os rumos da economia brasileira, principalmente após as primeiras medidas da equipe econômica do então presidente Fernando Collor de Melo. Para dar conta dessa demanda, ele abriu uma empresa de consultoria. Ao mesmo tempo, entrou com um pedido na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que, enquanto não revalidasse seu diploma de bacharel no curso de Direito da USP, pudesse também oferecer consultoria em Direito italiano, em especial para descendentes de italianos que gostariam de tirar o passaporte.
— Essa foi a minha primeira atividade no Brasil como advogado. Como eu também tinha essa experiência do tempo em que havia trabalhado com os consulados italianos na Alemanha, apresentei ao consulado de São Paulo algumas soluções, que vigoram até hoje, para resolver certos problemas. Como, por exemplo, as pessoas que não podiam mudar de sobrenome para requerer sua cidadania italiana. Para fazer esse trabalho, eu me associei a uma advogada brasileira e definimos uma metodologia de trabalho para fazer as correções. Creio que, entre 1990 e 1994, fizemos cerca de 10 mil cidadanias italianas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba.
Em 1995, já como membro da OAB, Giacomo estava autorizado a advogar. Naquela época, o Plano Real começava a trazer estabilidade à economia brasileira. Muitos dos clientes cuja cidadania italiana ele havia ajudado a tirar eram empresários; por isso, não faltou quem o procurasse para começar a fazer negócios com a Itália. E, aproveitando os bons ventos da economia, também havia pequenas e médias empresas italianas que desejavam se relacionar comercialmente com o Brasil.
— Naquele ano, fechei a empresa de consultoria e abri a Guarnera Advogados para atender, num primeiro momento, pequenas e médias empresas italianas que queriam investir no Brasil. Depois, em 1992, fundei a Câmara Ítalo-Brasileira Júnior para reunir ítalo-brasileiros e começar a animar aquela geração um pouco ausente nas instituições.
Com o passar do tempo, o escritório cresceu e evoluiu. Em agosto de 2008, mudou-se para um espaço maior no bairro da Vila Olímpia. A Guarnera Advogados atua nas áreas do Direito societário, contratual, contencioso, trabalhista, tributário e de imigração, entre outras. Em 25 anos de atividade, atendeu clientes de todos os portes. No início, eram empresas menores, familiares. Mas esse perfil tem mudado bastante nos últimos anos.
— O Brasil é um mercado complexo, exigente e caro para entrar. Não dá para tentar e depois ver como fica. A companhia que quiser se estabelecer aqui precisa ter um projeto claro, saber quanto vai custar e perseverar durante alguns anos — explica Giacomo.
Hoje, o escritório atende cerca de 500 empresas, a maioria com raízes italianas. Um dos motivos dessa excelente base de clientes é o atendimento quase personalizado que oferece.
— Como sei como as coisas são na Itália, procuro atender as empresas de lá como elas estão acostumadas. Embora, num primeiro momento, tudo pareça mais ou menos semelhante, há muitas diferenças entre os dois países. Além de cuidar da parte jurídica, no começo também somos administradores. Até orientamos sobre como abrir uma conta no banco, fazer os pagamentos, etc. Ficamos de olho em tudo para que não aconteça nada de errado. O Brasil é muito complicado para quem vem de fora e as questões tributárias não são de fácil compreensão. Há clientes que, mesmo há anos no país, ainda têm dúvidas sobre a legislação tributária. Sobre isso, aliás, costumo dar muitos seminários na Itália. Inclusive, recentemente, firmamos uma parceria com dois escritórios de advocacia na Itália. Um em Roma e outro em Milão. Tudo isso permite oferecer um atendimento melhor e mais ágil às empresas — comenta o advogado.
“Crise gera oportunidades”, ressalta o advogado
Embora não seja economista, Giacomo Guarnera avalia que a atual situação econômica do Brasil causa preocupações e perplexidade. E que, por isso, é preciso que o governo tome decisões claras para resolver os problemas nacionais com o objetivo de restaurar a confiança dos investidores. Por outro lado, a crise traz um fator positivo a quem queira se instalar no território.
— Toda crise gera boas oportunidades. Com o euro valorizado, os ativos brasileiros passaram a custar menos. É uma ótima chance para quem tem um projeto estratégico claro e bem definido e consegue enxergar um país melhor a médio e longo prazo.
Do relacionamento de Ana Luiza e Giacomo nasceu Francesco, hoje com 22 anos de idade, estudante do quinto ano de Direito na Pontifícia Universidade Católica (PUC), em São Paulo. É provável que ele siga os passos profissionais do pai — embora, atualmente, faça estágio em outro escritório, também em São Paulo. Além disso, recentemente Francesco fez um curso de seis meses na tradicional Università Commerciale Luigi Bocconi, em Milão. Como seus laços com o Brasil estão cada vez mais fortes, há três anos, Giacomo tomou a decisão de tornar-se brasileiro.
— Tomei essa decisão por dois motivos principais. O primeiro é que, depois de 20 anos de residência no Brasil, gostaria de poder ter direitos políticos. Sentia que minha atividade profissional e pessoal estava colaborando com a sociedade brasileira, mas eu não podia expressar meu voto nas eleições. A outra é mais esportiva, pois havia a possibilidade de defender o país em competições internacionais de esgrima na categoria Máster — revela.
De fato, após adotar o Brasil como sua residência, constituir família, abrir um conceituado escritório de advocacia e dar início a um importante projeto social, o siciliano Giacomo Guarnera defendeu o verde-e-amarelo em vários torneios sul-americanos, pan-americanos e mundiais de esgrima, colecionando diversos títulos ao empunhar o florete e a espada. Literalmente, esse siciliano luta pela melhoria do Brasil.