Debate com especialistas em Roma analisa com profundidade histórica a atual crise brasileira
O ditado popular diz que pimenta nos olhos dos outros é refresco. No entanto, observar de fora a crise brasileira pode ajudar a compreender as raízes do problema. O debate intitulado Qual Brasil? mostrou como os brasilianistas italianos interpretam o nosso atual transtorno e o alto nível dos participantes evidenciou, de modo geral, uma visão panglossiana — palavra erudita que significa aquele que se caracteriza por grande otimismo diante de severas adversidades.
O evento, realizado em 27 de outubro, em Roma, promovido pelo Instituto da Enciclopedia Italiana Treccani e pelo Almanacco latinoamericano (revista mensal online), fez parte do ciclo Encontros com a América Latina, organizado por Donato Di Santo, reconhecido dirigente do Partido Democrático que mantém forte ligação com o Brasil. As saudações institucionais foram do secretário-geral do Ministério italiano das Relações Exteriores e da Cooperação Internacional (MAECI), o embaixador Michele Valensise; do secretário-geral do Instituto Ítalo-Latino Americano (ILLA), o embaixador Giorgio Malfatti; e do embaixador do Brasil na Itália, Ricardo Neiva Tavares.
Em seguida, o debate entrou na carne viva da crise brasileira. Participaram o professor Roberto Vecchi, da Universidade de Bolonha; a professora Antonella Mori, da Universidade Bocconi de Milão, a deputada Marina Sereni, vice-presidente da Câmara dos Deputados e presidente do grupo parlamentar Itália-Brasil; o deputado Fabio Porta, eleito no Brasil para o Parlamento italiano; Paolo Magri, vice-presidente e diretor do Instituto de Estudos de Política Internacional (ISPI); e Roberto Da Rin, jornalista do Il Sole 24 Ore.
— Para os observadores externos, esta crise surpreende, pois o Brasil construiu a imagem de solidez, de uma ex-periferia que conseguiu alcançar seu papel de ator global. Surpreende também a velocidade do impacto desta crise, que eu não diria de declínio, e sim de transformação — iniciou o debate o professor Roberto Vecchi.
Ele propôs uma reflexão sobre o início da crise brasileira ao enquadrar um período, para então interrogar sobre uma eventual saída. A sua dissertação foi articulada com fatores externos e internos brasileiros. Se quiséssemos elencar as causas da crise brasileira, a lista seria longa, afirmou, incluindo a mudança do quadro da economia internacional, a crise dos Brics depois da desaceleração da China, o reassentamento da economia internacional, a queda dos preços das matérias-primas.
— Internamente, eu citaria a recessão da economia com as consequências na inflação e no desemprego, a interrupção do processo de inclusão. Além disso, o duro e talvez excessivo choque econômico proposto pelo ministro da Fazenda que foi ao mesmo tempo fiscal, cambial e monetário, que acabaram por influenciar as expectativas econômicas. Finalmente, no campo político, com exceção da campanha eleitoral de 2014, as acusações de corrupção, a crise do sistema político e dos seus autores com numerosos pedidos de impeachment da presidência, a crise do principal partido do governo, o PT, o questionamento sobre os programas sociais, a suposta colusão da presidente Dilma com o sistema corrompido da Petrobras. Enfim, uma mistura explosiva ideal para provocar a tempestade perfeita que deixa o horizonte com contornos incertos — analisou o professor.
Ele descreveu as desavenças entre Dilma e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, como um “choque institucional com equilíbrio de guerra fria”.
A análise de Vecchi levou em conta as manifestações de março e agosto deste ano a favor do impeachment, cujos participantes tinham: “um perfil social reconhecível como brancos de meia idade, de classe média alta, que não têm nada em comum com os movimentos interclassistas de 2013, que se manifestaram pela melhoria dos direitos sociais durante a Copa das Confederações, antes da Copa do Mundo”.
Crise teria como matriz de tensão a Constituição de 1988
— Minha afirmação é aparentemente banal: a crise do Brasil é uma crise brasileira, que vai além das variações da economia internacional — resumiu o professor italiano, acrescentando que é uma crise na qual se confrontam as fragilidades da política do governo e da oposição.
Segundo Vecchi, “a visão a breve prazo não permite enxergar que são as permanências, e não as rupturas, a determinarem o cenário atual”.
A constituição de 1988, segundo ele, poderia ser a matriz da tensão. Para ele, as fragilidades de hoje remetem à metade dos anos 80, na fase de redemocratização do Brasil. Como dizem os historiadores, é uma constituição sem vencedores, baseada num equilíbrio que os constitucionalistas julgam como muito tenso. Tal equilíbrio está ligado a um forte empenho da estabilidade, como diz a constituição, que entra numa tensa relação com o projeto de justiça e inclusão social, também estabelecido constitucionalmente.
— Esta tensão não foi resolvida nos anos sucessivos. Se estamos diante de uma matriz de todos os inícios, a do tipo constitucional, podemos entender aspectos que hoje são difíceis de interpretar, como a bulimia da política, que parece engolir todos os outros poderes, o Legislativo e o Judiciário. Estes poderes são usados como uma arma contra ou a favor do Executivo.
PMDB, um centrão centrípeto
O professor não parou por aqui. Ele definiu o PMDB como um “impulso centrípeto ao centrão, um centro hipertrofio e potente, fisiológico e decisivo da política brasileira”, citando o livro Imobilismo em Movimento, do filósofo brasileiro Marcos Nobre.
— É uma política que se fecha no centro e deve cortar as asas. Enfim, é uma política barroca, um presidencialismo de coalizão. Isso dificulta a resolução dos conflitos entre presidente, parlamento e outros poderes do Estado.
Como saída do labirinto desta crise, Vecchi descarta que poderia ser o retorno do presidente Lula, uma opção que talvez consiga “dar a partida no sistema, mas talvez não o transforme”.
— As condições atuais são muito diferentes do período de oito anos do governo Lula, que conseguiu uma grande conciliação entre a elite e os excluídos da classe de consumo. Agora, talvez não seja possível. Faltou a reforma política. As tentativas de mudança foram tímidas. Ainda não foi resolvida a desregulamentação do financiamento privado aos partidos. É preciso uma reforma substancial, mas falta o ator capaz de realizá-la — ressaltou o especialista.
O professor observou que uma das poucas coisas que mudaram no país foi a sociedade:
— O Brasil mudou menos do que pensávamos. Por isso se trata de uma crise originariamente brasileira. O que mudou foi a relação de força entre o Estado e a sociedade, que assumiu dimensões ativas muito mais consistentes, consequência do amadurecimento democrático brasileiro. As provas não devem ser buscadas no horizonte atual, ofuscado pelos problemas que impedem uma visão clara sobre a origem desta crise, e sim em 2013, nas manifestações que reivindicavam mais direitos aos cidadãos.
Segundo o professor, naquelas manifestações, um outro Brasil começou a se formar. No entanto, os projetos dos partidos políticos foram insuficientes para responder às reivindicações.
Para Roberto Vecchi, a saída para a crise seria um pacto entre todas as partes.
— Não só um ator, como foi no passado, e sim mais atores deveriam se alinhar para construir um novo pacto, desta vez não só de reconciliação, mas de transformação do Brasil com as forças presentes. Qual Brasil? Um pacto de ação que suspenda o conflito beligerante, um projeto de nação que vá além dos interesses dilacerados das partes. A minha conclusão é interrogativa ou hipotética. O Brasil será capaz de construir em breve um horizonte brasileiro além do Brasil de hoje, que no fundo é o Brasil de sempre? — questiona.
Uma crise que “se alimenta de si mesma”
A professora Antonella Mori apresentou dados econômicos, sem poupar críticas. O ano de 2015 registra a pior crise econômica brasileira dos últimos 25 anos, que terminará com uma recessão de 3% e, em 2016, a recessão vai continuar, alertou.
— É uma crise que se autoalimenta. O real está desvalorizado. Isso significa que honrar a dívida externa, que não é elevada, fica mais caro por causa do câmbio. Para combater a saída de capitais, a taxa de juros foi aumentada. O crédito diminuiu, portanto existe o problema da crise econômica que, por sua vez, pode levar a uma maior depreciação. É um círculo vicioso que deve ser interrompido com um sinal claro de mudança. É necessário um controle da dívida pública e contas fiscais em ordem. O rebaixamento do Brasil dado pela Standard & Poor’s significa que o país tem dificuldades para aprovar um balanço rigoroso. O Brasil precisa dar um sinal para interromper este círculo, e isso é papel da política — explicou.
Economia estável, um milagre inacabado
A vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marina Sereni, também falou ao público e criticou a atual política econômica.
— Queremos que o Brasil continue a ser um dos protagonistas mundiais. É claro que precisa dar segurança aos mercados e de uma política de contenção das despesas, de rigor e de ajuste. Mas como é possível convencer as pessoas sem crescimento econômico? Como o Brasil vai explicar a política de contenção das despesas, não só aos mercados, mas aos cidadãos que saíram da pobreza e arriscam cair de novo? — indagou.
Sereni, que também é presidente do grupo parlamentar Itália-Brasil, prosseguiu sua análise com um episódio curioso.
— Estávamos com Donato Di Santo numa palestra na Fundação Getúlio Vargas, de São Paulo, quando um professor nos explicou o esmagamento da crise política brasileira, ao mostrar o menu de uma pizzaria com 39 tipos diferentes de pizza. Em cada uma estava descrito os ingredientes. O professor disse que, depois de ler a terceira pizza, escolhe-se a simples Margherita. A mensagem é clara: o cidadão continua votando nos candidatos que votou antes, porque não aguenta ler todos os tipos, pois existem 28 partidos no parlamento. Não acredito que o presidencialismo de coalizão possa oferecer uma saída. — finalizou.
O deputado Fabio Porta citou uma recente entrevista do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que fala do Brasil como um milagre que nenhum outro país no mundo conseguiu realizar, o de retirar 36 milhões de pessoas da pobreza. O Brasil deve continuar nesse caminho, mas agora os desafios ainda são enormes neste “milagre inacabado”.
— O revezamento dos partidos no Brasil é o segredo do sucesso econômico. Infelizmente, nos últimos anos, os dois principais atores, PSDB e PT, promoveram uma radicalização do confronto político, favorecido pelo achatamento da mídia, que escolheu uma só parte para a militância. A dialética, que antes era positiva, se transformou numa luta até a última gota de sangue.
O deputado lembrou que Eduardo Campos poderia representar uma alternativa para a presidência, mas a sua trágica morte em 13 de agosto de 2014 impediu um eventual revezamento de partidos.
Segundo ele, o Brasil não realizou a reforma política necessária e paga um preço alto por isso.
— Cada campanha eleitoral tem custos exorbitantes, assim como o custo da política, em nível federal e local. Uma Câmara de vereadores chega a afetar mais de 50% no balanço de um pequeno município.
O deputado disse também que ficou preocupado ao ler a entrevista do Comandante do Exército Brasileiro, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, publicada no Correio Braziliense.
— Esta entrevista de duas páginas, na qual ele falava como se fosse um líder político, opinando sobre as características que deveria ter uma pessoa para unir o país, me deixou preocupado — desabafa.
Mãos Limpas e Lava Jato: “O escândalo não purifica”
Fabio Porta mencionou também um artigo de Roberto Amaral, ex-presidente do Partido Socialista Brasileiro, que fala com o orgulho de uma democracia, composta por instituições que não vacilam, onde diversos políticos foram punidos com a detenção.
— O Brasil é talvez o único dos grandes países do Brics no qual foi possível uma operação de limpeza que investigou a corrupção. Talvez na Rússia, na Índia ou na China isso não seria possível.
Segundo Porta, assim como a Mãos Limpas não gerou uma política limpa na Itália, apesar das expectativas, a Lava Jato certamente não vai lavar os nossos defeitos institucionais.
— A Lava Jato não garante que seremos melhores no futuro. Garante só que éramos piores do que pensávamos no passado. Cuidado com a crise supostamente purificadora que você deseja para o Brasil. O caso italiano mostra que o resultado pode ser altamente destrutivo: marcar a vida do país por décadas e gerações e ter um custo econômico altíssimo.