Marco Lucchesi, amigo de Umberto Eco, que traduziu alguns de seus livros de sucesso para o Brasil
A tradução do romance A ilha do dia anterior, de Umberto Eco, foi a mais trabalhosa e a mais divertida, a mais difícil e a mais fascinante.
O enredo cabe em duas frases. Quase um filme de aventuras. De resto, belas e atraentes variações sobre o mesmo tema. Algo de Ravel.
Todavia, à viagem do protagonista Roberto — tão cheia de riscos e naufrágios — correspondeu o trabalho — não menos perigoso — do tradutor. Isso porque o romance está escrito em duas línguas: italiano barroco e italiano moderno. Tratava-se de fazer o mesmo em português. Para que não se perdesse aquele contraste. Mais: a paixão enciclopédica de Eco abraçou a medicina e a alquimia, a cartografia e a esgrima, a navegação e a astronomia, a botânica e a teologia. Tudo isso em detalhe e segundo as expressões (esquecidas ou quase) do século XVII. Palavras vestindo as roupas do tempo de Marino. Neologismos que nasceram com a mesma velocidade com que desapareceram. Inversões frasais. Aliterações. Trocadilhos.
Pois bem: o trabalho durou seis meses. Todo esse tempo na Ilha. Olhando-a com amor e desespero. Enamorado. Encantado. Aprisionado. Mais de sessenta dicionários. O mundo tornando-se um navio. As bibliotecas do Rio eram a estiva. Depois — as velas enfunadas — Washington, Roma e Lisboa. Os ventos da internet iam levando aos mares nunca dantes navegados eletrônicos, ciberespaciais. E algumas palavras demoravam semanas. Outras, meses. Era preciso checar as fontes do romance. Reexaminar as soluções. Transportar para o português. Quando chegava à palavra perfeita, só restava dizer: terra! terra!
Depois, a História trágico-marítima. As Cartas portuguesas. Os sermões, de Vieira. Manuel Bernardes. A Polianteia medicinal, de Semedo. Os poemas de Camões. Tudo isso para reescrever a nossa língua barroca. O dicionário de Bluteau. O de Morais.
Qual terá sido a Ilha de Roberto, protagonista da história? Mistério não há. Chama-se Qamea. Próxima de Fidji. Para a literatura, todavia, nada disso importa. Roberto jamais a alcançou. Talvez o seu nome seja utopia – na acepção positiva da palavra. O que move e ampara. Pasárgada de Bandeira. Innesfree de Yeats. A tradução, ilha do Amanhã.
Houve intensa troca de fax. Terminada a tarefa, enviei um fax a Umberto Eco, elogiando a profunda engenharia com que plasmou A ilha do dia anterior, fruto de profunda erudição, embora mais leve do que a pluma com que Roberto escrevia para Lilia.
Além disso, protestando amizade, indiquei-lhe duas ou três palavras que me pareciam errôneas. Sua resposta foi clara:
Obrigado pelo grande esforço. Pelo que pude entender de sua carta, o livro já foi publicado. Desejaria ter revisto a tradução porque percebi que alguns tradutores não receberam, do editor italiano, importantes correções (em especial sobre particularidades astronômicas), que eu fui incluindo no texto original até a segunda edição. Se isso também lhe aconteceu gostaria que, pelo menos, essas correções fossem inseridas numa eventual segunda edição brasileira.
Por exemplo, criou-se uma grande mistura no cômputo dos anos e uma confusão entre Jerusalém e Belém, a propósito do episódio de Judas.
Recebeu essas correções? De qualquer modo, estou ansioso para ver a sua tradução, publicada ou não, que imagino belíssima.
Mais uma vez obrigado e cordiais saudações de seu
Umberto Eco
Desfeitas as dúvidas iniciais, a editora enviou ao autor o livro impresso com os principais artigos que saíram no Brasil. Umberto Eco responde, agradecendo gentilmente, mas aconselhando modificações, que ele próprio decidira fazer na segunda e imediatíssima edição italiana:
Pelo que pude ver, a tradução parece-me bela, realmente. Além disso, vi como os jornais brasileiros deram justo e entusiasmado relevo ao seu trabalho. Por isso, mais uma vez, obrigado.
Verifiquei rapidamente o texto e encontrei alguns erros que sobreviveram, que eu mesmo encontrei há pouco e que evidentemente não lhe foram comunicados. Como espero que ocorra uma nova edição, assinalo a página e a linha da edição brasileira.
Renovo-lhe mais uma vez os meus agradecimentos e espero poder encontrá-lo um dia,
Umberto Eco
Foi assim que consegui libertar-me da Ilha, das trampas de seu autor, com quem troquei novas mensagens, que sinalizavam gestos de amizade e admiração.
Dentro de mim, todavia, permanece aquela mesma centelha poderosa, que me causava inquietação, aquela mesma necessidade obstinada, que me levou a conhecer outras línguas, embora tocadas pela sombra do inatingível, pois a tradução um campo de forças flutuante, cujo limite — havendo algum —, parece habitar o ainda-não, o fogo de Prometeu, o fruto proibido, ou a tentativa impossível, mas sempre desejada, de reconstruir, com temor e tremor, as escadas da Torre.
(trecho do livro
de Marco Lucchesi
Saudades do Paraíso, 1996.)