Na cultura italiana dominada pelo idealismo, impregnada de remoras católicas, condicionada pela arrogância dos intelectuais marxistas, não era fácil fazer com que Immanuel Kant e Superman interagissem. No início dos anos sessenta, década de irreverência e desestruturação dos modelos mais sagrados, Umberto Eco conseguiu.
Conseguiu também combinar filosofia e cultura de massa, teologia e imaginário televisivo, Academia e histórias em quadrinhos. Escreveu a «Fenomenologia de Mike Bongiorno» e ultrapassou uma fronteira.
Umberto Eco era a face simpática, despreocupada, sarcástica da vanguarda italiana que havia encontrado casa no «Gruppo ‘63». Não havia pose solene do transgressor. Não havia o artista ou o escritor que se levava muito a sério. Não havia o ideólogo que ditava o caminho vanguardista. Havia Umberto Eco que manuseava com inteligência e ironia a herança cultural para dela tirar sarro, misturando com suma maestria registros que tradicionalmente não podiam tocar-se, o “alto” e o “baixo”, a dimensão cômica e a erudição, os tomos da escolástica medieval e a irresistível tiração de sarro dos clássicos da literatura.
A demolição sarcástica de Lolita de Nabokov que depois dos cuidados de Eco se tornava uma surpreendente «Nonita». Ou o inesperado Elogio di Franti, o maldoso por excelência da tradição retórica italiana, imortalizado pela chantagem, mas limpidíssima prosa deamicisiana. Ou a estupidez dos editores que não sabem reconhecer a grandeza dos manuscritos recebidos pela redação e devolvem ao remetente Dante ou até mesmo o Autor da Bíblia.
É preciso reler com atenção, e sem deixar-se levar por uma risada contagiosa que Eco sabia sabiamente causar, as passagens mais brilhantes de Costume di casa para entender a força provocatória deste intelectual refratário a qualquer esquema.
Repassar um pouco da prosa de Umberto Eco, reconhecer sua previdência e perspicácia para entender como a cultura de massa era ainda um objeto desconhecido naquela época. Poderosíssimo, mas ainda não compreendido como conceito. Demonizado pelos pedagogismos das grandes igrejas ideológicas, mas nunca compreendido em seus mecanismos fundamentais.
Claro, também Umberto Eco podia se enganar, como quando não entendeu a linguagem das Brigadas Vermelhas, tomando seus comunicados por fruto de uma ditadura policial. Mas a descoberta de Eco da «obra aberta» rompeu com esquemas consolidados, introduziu um elemento de fluidez, e também de liberdade, em disciplinas em que prevalecia ainda o dogmatismo incontestado, a conformidade a uma doutrina, a crônica incapacidade de sorrir e de rir. Aquela capacidade de rir que está então no centro da construção da narrativa de O nome da rosa, em que os guardiões do dogma e da tradição não recuam nem mesmo diante dos mais brutais crimes para poder esconder um texto sobre o riso que poderia causar a explosão da ordem de uma biblioteca e, portanto, da ordem de um mundo inteiro. Umberto Eco não conhecia tabus no exercício de sua arte de transgressão, de desenvelhecimento cultural, de modenidade. Sem ele teríamos muito pó ainda para varrer de nossos hábitos mentais.