Computador termodinâmico que purifica água, gera energia elétrica e se conecta à internet aquece discussões sobre a escassez de água no mundo
Este mês, quando se comemora o Dia Mundial da Água, em 22 de março, dados divulgados nos últimos anos pela ONU colocam o planeta em alerta: calcula-se que mais de um bilhão de pessoas no mundo não consomem água tratada, levando à morte cerca de 1,6 milhão de seres humanos. Se nada for feito para reverter esse quadro, a ONU avalia que, até 2030, todo o mundo deverá enfrentar um déficit de 40% de água. Para tentar dissipar essa nuvem de dificuldades, uma sofisticada alternativa ítalo-espanhola aparece como um “arco-íris tecnológico” nesse cenário tempestuoso: um computador termodinâmico capaz de purificar e dessalinizar a água. Achou pouco? De “brinde”, ainda gera energia elétrica e faz conexão com a internet. Porém, é preciso receber a novidade com cautela, sobretudo, no que se refere à complexa realidade brasileira de encargos fiscais, políticas públicas e segurança, conforme analisam especialistas brasileiros.
A máquina, movida a energia solar, é fabricada pela empresa Watly, que tem duas unidades na Itália (em Udine e em Bari), atuando com plataformas técnicas para testes do produto. Trata-se de um sistema “três em um”, com certificação ISO 9001 (qualidade) e 14001 (ambiental): gera energia elétrica, produz água limpa e faz conexão à internet, com comunicação via satélite. Seu funcionamento atua com um sistema de destilação do líquido por compressão a vapor, que purifica e dessaliniza a água. O mecanismo pode receber água contaminada de bactérias, micróbios e fungos. A água suja é vaporizada com o calor solar recebido pelos tubos à vácuo, e permanece na máquina apenas o líquido condensado e limpo. Substâncias como arsênico, chumbo e cloro também são completamente eliminadas pelo sistema.
O economista Marco Attisani, CEO e fundador da empresa, é o grande idealizador desse projeto, que ganhou financiamento do Horizon 2020, um dos maiores programas de investigação e inovação da União Europeia. Ao longo de sete anos, entre 2014 e 2020, o programa está disponibilizando em torno de 80 milhões de euros para projetos inovadores e sustentáveis:
— Recebemos 1,4 milhão de euros do Horizon e investimos 1,5 milhão de euros para a realização do empreendimento e construção da máquina — revela à Comunità.
Porém, outras realizações ainda aguardam ser concretizadas nos planos do empresário, um ítalo-brasileiro que nasceu em Brasília e foi adotado por uma família italiana aos dois anos de idade:
— A maior satisfação da vida seria atender às necessidades da minha pátria madre. Mas ainda não tive contato de nenhum comprador brasileiro — confessa, referindo-se ao problema da seca no sertão nordestino do Brasil.
Países africanos e asiáticos prestes a comprar a máquina 4.0
Enquanto o pedido brasileiro não chega, países da África e da Ásia já estão em processo avançado de negociação e devem concluir a aquisição de uma máquina grande, versão 4.0, ainda este mês. Por confidencialidade contratual, os compradores preferem não ser divulgados. Já informações sobre valor e capacidade produtiva não são um segredo. A máquina grande custa 750 mil de euros. Tem capacidade para purificar mais de 20 mil litros de água a cada 8 horas e gerar 100kW de energia elétrica por dia. A velocidade de internet depende do provedor de conexão. A máquina pequena custa 350 mil euros.
Diante de cifras tão significativas, especialistas brasileiros questionam a viablidade dessa alternativa por aqui, como Alberto Hernandez, professor de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP):
— A viabilidade econômica teria que ser estudada adequadamente para verificar se os valores de instalação e manutenção justificariam o uso desse recurso no Brasil. Além disso, não sabemos o custo de manutenção, que deve ser alto — pondera.
O professor de termodinâmica e coordenador do curso de Especialização em Energias Renováveis e Eficiência Energética da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Christian Strobel, esboça possíveis valores para a manutenção desse sistema, que se propõe a durar, no mínimo, 20 anos:
— Imagino que seria necessário pelo menos um engenheiro, dois técnicos de manutenção e dois funcionários de limpeza. Isso daria um montante mensal de pelo menos R$ 35 mil, já com encargos e tributos. Comparado com usinas de geração de energia elétrica, de distribuição de água e ainda provedores de internet, acho que é um custo relativamente pequeno. Essas despesas também poderiam ser reduzidas se a usina operasse sob demanda destes serviços — calcula.
Cientistas brasileiros divergem sobre o uso do sistema
Outra questão levantada por Strobel refere-se às condições de segurança pública do país para garantir o funcionamento de um equipamento tão caro:
— Trata-se de uma solução com alto valor agregado, consequentemente, com um preço elevado para a realidade das regiões mais afastadas da rede. Apesar de o equipamento não precisar de muitos operadores, a realidade de segurança pública deve garantir uma operação onde não haja vandalismo e/ou roubos de componentes. Além disso, pode esbarrar em problemas de gestão pública, sobretaxa de energia, saneamento básico precário e encargos fiscais — alerta o professor.
Alheio a questões externas, Attisani, CEO e fundador da Watly, se mantém firme no poder trasnformador da tecnologia:
— Acho que um país como o Brasil tem contextos social, geográfico e econômico perfeitos para desenvolver o novo paradigama da Energy_net, um sistema sosfisticado de produção de água e eletricidade que pode melhorar muito as condições de vida de quem precisa — argumenta.
O professor Strobel reconhece que a máquina seria uma esperança para as regiões mais necessitadas:
— Sem levar em conta a realidade política, apenas técnica, poderia atender bem à população do Nordeste, sobretudo, por se tratar de uma geração distribuída, ou seja, que pode ser instalada diretamente em regiões onde há carência nestes serviços. Para zonas remotas, desconexas dos grandes centros urbanos, é uma solução incrível, uma forma de distribuir a geração de energia e água — afirma.
Attisani conta que a audaciosa ideia de resolver a falta de água no mundo por intermédio da tecnologia começou 13 anos atrás, em 2005, quando leu o livro The singularity is near (A singularidade está próxima), de Ray Kurzweil. De lá pra cá, o empreendimento foi ganhando forma, adeptos e financiamento externo. A grande estreia para o público aconteceu no ano passado, em outubro, na competição de barcos a vela La Barcolana, em Trieste, capital da região do Friuli. A escolha de uma importante cidade portuária, de frente para o mar, não foi aleatória: a água, essencial à sobrevivênvia da humanidade, tem significado especial nessa conjuntura.
Brasil sofre com o desperdício
Embora o planeta seja composto em grande parte de água, apenas 0,003% dela é potável em estado líquido, sendo o restante de água salgada. Neste contexto, o grande mérito do computador termodinâmico seria a capacidade de eliminar o sal da água, tornando-a apta ao consumo humano, o que não é um processo simples. Mas há uma boa notícia para os brasileiros: 12% da reserva de água doce no mundo encontra-se em terras tupiniquins. A maior parte dessa reserva (70%) concentra-se na bacia amazônica. O problema é a baixa qualidade da água nas cidades e o desperdício, observa Strobe:
— Em território urbano, 25% da água analisada estão com qualidade ruim, 5% com qualidade péssima e os outros 70% apresentam nível regular. O Nordeste tem menos de 5% das reservas, e ainda possui teor de sólidos salinos acima do limite aceitável. No país, 87% das águas são desperdiçadas — lamenta.
Attisani conclui que o problema não é a falta de água, mas o fato de grande parte da reserva disponível estar contaminada ou não ser potável. Para solucionar a questão, ele acredita fielmente no poder da tecnologia:
— Não produzimos apenas uma máquina, acreditamos em uma “tecnofilosofia”. A única possibilidade de a civilização humana sobreviver à eternidade é o homem transcender seus limites de destruidor da natureza e se tansformar no senhor do planeta. Não somos a doença do mundo, somos a cura — reflete.