Reunidos em Roma, representantes de 170 países se comprometem a combater a desnutrição e o excesso de peso, paradoxo que caracteriza o mundo de hoje
Pela primeira vez, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) obteve a responsabilidade dos governos dos países para tomar medidas fortes, legislar a produção alimentar e educar a população sobre comida saudável e boa nutrição. Para assumir tal responsabilidade, durante a Segunda Conferência Internacional sobre Nutrição (ICN2), em novembro, foi assinada a Declaração de Roma sobre Nutrição. O documento estabelece o direito de todos ao acesso a alimentos seguros, em quantidade suficiente e com qualidades nutritivas. Os governos se comprometeram a prevenir a nutrição inadequada em todas as suas formas, incluindo a fome, as deficiências de micronutrientes e a obesidade.
— Temos o conhecimento, a experiência e os recursos necessários para superar todas as formas de nutrição inadequada. Os governos devem liderar o caminho. Mas a pressão para melhorar a nutrição global deve ser um esforço conjunto, envolvendo organizações da sociedade civil e o setor privado — afirmou o diretor-geral da FAO, o ítalo-brasileiro José Graziano da Silva.
Para ele, é o reconhecimento do papel da política na alimentação, e não apenas da sociedade civil.
— Queremos que os alimentos sejam controlados desde a origem, através de um sistema de rastreamento para que o consumidor saiba exatamente o que está comendo — explicou.
No entanto, não basta assinar um documento: é preciso agir contra a má nutrição. A Conferência deu um passo importante com o chamado Quadro de Ação. Trata-se de uma linha de conduta, um compromisso dos políticos com a sociedade civil e o setor privado, articulado em 60 ações que os governos podem incorporar em suas políticas nacionais de nutrição, saúde, agricultura, educação, desenvolvimento e investimento. Foram feitas também recomendações para a boa nutrição — como não exagerar na quantidade de sal, açúcar e gorduras.
A Declaração e o Quadro são frutos de quase um ano de intensas negociações, que envolveram representantes dos países membros da FAO e da Organização Mundial da Saúde. Embora possa parecer óbvia, pois a má nutrição está diretamente ligada às doenças, a parceria da FAO com a OMS em uma mesma conferência é inédita. A primeira Conferência Internacional sobre Nutrição foi organizada em 1992. Ao longo desses 22 anos, a fome no mundo diminuiu, mas aumentou a obesidade, dois extremos da mesma moeda. Há duas décadas, cerca de um bilhão de pessoas sofria de fome e má nutrição. Hoje, existem cerca de 800 milhões de desnutridos no planeta, ou seja, houve uma redução de 21%. Os países reconheceram que, apesar dos importantes avanços, os progressos têm sido insuficientes e desiguais.
A desnutrição crônica afeta 161 milhões de crianças até os cinco anos de idade, enquanto a fome aguda atinge 51 milhões de menores da mesma faixa etária. De acordo com os dados da FAO, somente no ano passado, a desnutrição foi a principal causa de morte entre 45% das crianças de até cinco anos de idade. Por outro lado, a má nutrição também é a causa de um problema oposto: a obesidade. Hoje estima-se que existam 500 milhões de pessoas obesas, e não só nos países ricos do Ocidente. A obesidade também é causa de mortalidade e agrava o balanço econômico dos países.
Brasileiros estão gordos, cita livro publicado pela FAO
Durante a Conferência, a FAO lançou o livro de bolso Nutrição e Alimentação em Números, que reúne dados abrangentes sobre o estado da nutrição em todas as regiões do mundo. A publicação aborda temas como a deficiência de micronutrientes, o sobrepeso, a obesidade e as doenças não transmissíveis da década de 1990 até hoje. Além disso, apresenta indicadores na relação entre nutrição, saúde e meio ambiente, dados sobre consumo e preços dos alimentos e informações sobre emissões do carbono e uso do solo. Os dados do Brasil de 2014 mostram que, entre os adultos, 52,4% dos homens e 51% das mulheres estão obesas. Entre as crianças, 6,9% dos meninos e 7,7% das meninas estão obesas, enquanto 2,2% dos meninos e 2,1% das meninas se encontram abaixo do peso.
Papa Francisco: famintos pedem dignidade e não esmola
O discurso do pontífice no auditório principal da FAO, diante dos representantes de 170 países, foi intenso. A primeira preocupação deve ser a própria pessoa, enfatizou, “aquelas que carecem de alimento cotidiano e que deixaram de pensar na vida, nas relações familiares e sociais e lutam apenas pela sobrevivência”.
— Hoje em dia, fala-se muito em direitos, esquecendo-se com frequência dos deveres; talvez nos preocupemos muito pouco com os que passam fome. Além disso, dói constatar que a luta contra a fome e a desnutrição é dificultada pela prioridade do mercado e pela preeminência da ganância, que reduziram os alimentos a uma mercadoria qualquer, sujeita à especulação, inclusive financeira. E enquanto se fala de novos direitos, o faminto está aí, na esquina da rua, e pede um documento de identidade, ser considerado em sua condição, receber uma alimentação de base saudável. Pede-nos dignidade, não esmola — disse o papa Francisco, para quem tais critérios não podem permanecer no limbo da teoria. Pessoas e povos exigem que a justiça seja colocada em prática; não apenas a justiça legal, mas também a contributiva e a distributiva.
Ao lembrar o discurso de João Paulo II em 1992, Francisco alertou a comunidade internacional para o risco do paradoxo da abundância:
— Existe comida para todos, mas nem todos podem comer, enquanto o desperdício, o descarte, o consumo excessivo e o uso de alimentos para outros fins estão sob nossos olhos. Infelizmente, este paradoxo continua sendo atual — frisou.
Segundo o diretor-geral da FAO, líderes religiosos de calibre internacional podem exercer um grande papel no combate à fome e à nutrição inadequada.
— Realmente, a fome é também um tema moral, um tema que degrada a dignidade do ser humano. E o engajamento do papa na luta contra a fome, contra o desperdício de alimentos, tem sido uma constante. Eu já estive duas vezes com ele e nós sempre falamos de novos projetos e de como nós podemos trabalhar juntos para conseguir alcançar mais rapidamente esses objetivos. De modo que nós temos no papa um grande aliado, além de um grande conselheiro — disse Graziano da Silva, na véspera da visita do pontífice à FAO.
Homenagem aos países campeões na luta contra a fome
A FAO homenageou 13 países com reconhecimento por avanços obtidos no combate à fome, incluindo o Brasil. Os outros 12 países que mais obtiveram progressos recentes são Camarões, Etiópia, Gabão, Gâmbia, Irã, Kiribati, Malásia, Mauritânia, Maurício, México, Filipinas e Uruguai. Graziano entregou um certificado aos representantes dos países, entre eles a ministra brasileira do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, o ministro da Agricultura e do Desenvolvimento Rural de Camarões, Menye Essimi, e o vice-presidente de Gâmbia, Isatou Njie-Saidy. Há duas categorias de prêmios: o primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (MDGs), que é a redução pela metade da proporção de pessoas subnutridas até 2015, e aquele entregue aos países que alcançaram antecipadamente uma meta ainda mais ambiciosa: diminuir pela metade o número absoluto da fome até 2015. Brasil, Camarões e Uruguai estão na segunda lista.