Documentário inédito reúne mulheres italianas que explicam por que optaram por não terem filhos e contribui para o debate sobre os novos modelos de família
Escuto o ruído da chamada online que toca de repente, a mais de nove mil quilômetros de distância. Elisabetta se materializa e chega do mundo virtual até a tela do meu computador. “Ciao!”, exclama contente Pandimiglio Elisabetta, fiel amiga de muitos anos, que continua vivendo em Roma, a cidade onde nos conhecemos nos anos 1970, na Sapienza, quando a universidade era o coração pulsante de uma época promissora e entusiasmante, apesar de chamada de “anos de chumbo”. Foram, sim, anos de revoltas e conflitos, mas também de mudanças que continuam até hoje na vida de muita gente, incluída a de Elisabetta, que não é mais estudante de letras, e sim escritora e diretora do inédito documentário dirigido juntamente com Daria Menozzi, no qual elas relatam a história de mulheres que não quiseram ter filhos.
Cristina, Ivana, Carla, Valeria e outras mulheres de Sbagliate contam suas próprias histórias diante de um conjunto de mesa, no sofá e no salão de beleza. O que as une é a escolha de não querer ser mãe, mas “mulheres erradas”, de acordo com o pensamento comum.
— Organizamos grupos de autoconsciência, como na época em Via del Governo Vecchio, lembra? Foi assim que trabalhamos com as mulheres do documentário — conta Pandimiglio à Comunità.
As palavras saem do computador com a passionalidade e a força de um tempo. Ela relembra uma época em que consciência e liberdade eram os principais lemas das mulheres, quando queriam mudanças históricas na sociedade, como a legalização do aborto e o divórcio, diretos adquiridos pelas italianas graças a históricos referendos. Não foi algo que caiu do céu, e sim fruto de uma luta do movimento feminista, que conseguiu obter o reconhecimento de mudanças comportamentais e culturais na sociedade italiana. Elisabetta foi uma das fundadoras do Telefono Rosa, a primeira experiência de ajuda às mulheres vítimas de violência nas famílias.
Filmagens duraram quatro anos e não foi fácil encontrar mulheres dispostas a falar
Sbagliate não foi filmado de um dia para o outro. As gravações começaram em 2010 e terminaram em 2014, mas o projeto foi iniciado bem antes. A diretora explica que cada mulher entrevistada deu motivações diferentes, além de não ter sido fácil encontrar pessoas dispostas a contar a própria história, pois o assunto suscita certo mal-estar entre as pessoas e atinge preconceitos encravados no subconsciente coletivo. Preconceito é a palavra que Elisabetta usa várias vezes na entrevista, parecida com aquelas conversas que costumávamos ter também nos coletivos, lugares onde os jovens se aprofundavam na consciência através da dialética. A consciência é um elemento essencial para ela, ponto essencial para quebrar a forte barreira do convencionalismo que escraviza mulheres e homens a comportamentos estereotipados. Quem é livre escolhe.
— Os condicionamentos limitam ao máximo a liberdade — afirma.
Aliás, Elisabetta e Daria não quiseram ter filhos. Foram escolhas tomadas em liberdade e, cada um delas, por motivos diferentes.
— Não tenho por uma razão bem precisa, pois no começo nunca tinha dito que não queria tê-los, mas, com o passar do tempo, isso nunca chegou a acontecer. As coisas nunca acontecem por acaso. Se você deseja algo, acontece — afirma Pandimiglio, que jamais engravidou, apesar das duas longas relações com homens, os quais tiveram filhos depois da separação.
Para Menozzi, as motivações foram outras.
— Daria me disse sempre que não queria tê-los, pois foi uma filha muito feliz. Em consequência disso, nunca sentiu a exigência da passar a ser mãe — revela Pandimiglio.
A paixão por viagens, um estímulo para ser child free
Entre as motivações de Daria, segundo Elisabetta, existe uma que está ligada ao item “viagens”. A italiana, desde criança, amava viajar. Sentia e sabia que teria uma vida em movimento e isso, o que a levou a ser child free. De qualquer maneira, para Pandimiglio, não ter tido filhos é algo difícil para ser explicado:
— Este filme foi uma maneira para tentar explicar, junto com outras mulheres, a razão pela qual não quisemos ser mães e porque eu não sou mãe. Poderia ter sido uma falta de instinto maternal? Eu não sei se existe este instinto, o que seria, mas fiz a escolha de não tê-los. Dediquei muito tempo ao trabalho autoral, de escrever, aos outros que amo e àqueles que nunca conheci. Assim vivi até hoje, mas não sei se é a verdadeira razão; apesar de acreditar que uma mulher pode ser mãe sem sê-lo biologicamente.
Ambas cuidam muito dos próprios parentes, das mães sobretudo, e também dos filhos dos outros.
— De certa maneira, isso significa ser mãe, apesar de não ser reconhecido como tal. Quantas vezes tive que ouvir “você não pode falar porque nunca foi mãe”. Mas eu fui filha também! — exclama a diretora de mais 50 obras exibidas em mais de 20 países do mundo.
Ela acredita que uma mulher pode “se libertar” com ou sem filhos.
— Penso que cada um deve ser livre para escolher, mas existe sempre uma retórica dominadora e esta retórica, com certeza, é aquela maternal, muito difícil da erradicar, pois vivemos na Itália, o Estado onde fica a Igreja. A maternidade é vista quase como algo sagrado — acrescenta a romana.
O preconceito contra as mulheres que não quiseram ser mães foi vivido na pele das autoras.
— Não querer ser mãe é um tabu inclusive na sociedade moderna, por isso tivemos problemas até para encontrar um produtor — explica Pandimiglio. O documentário contou com a colaboração de Annamaria Laracca, uma das protagonistas, e de Altera Studio.
Os outros veem tais mulheres como “erradas”.
— É como se elas tivessem defeitos, como se lhes faltasse alguma coisa. Na realidade não foi uma negação, mas uma escolha, pois na vida não vivemos todas as possibilidades potenciais que temos — precisa Pandimiglio, para quem as mudanças comportamentais são atitudes difíceis de serem alcançadas pelos indivíduos e pelas sociedades.
Filme estimula o debate sobre as mudanças na sociedade italiana
Para a diretora, a partir dos depoimentos das mulheres, nasce uma reflexão coletiva que se torna consciência política, mas não ideológica.
— O documentário é político, pois, a partir das palavras, da reflexão verbal, você começa a jogar uma pedrinha. Devagar, devagar, a mentalidade deve aceitar que a sociedade mudou, a família mudou, os modelos culturais são outros e que são famílias também aquelas que não são tradicionais. Por isso, digo que o documentário é político — afirma Pandimiglio.
A diretora inclui as mulheres que não quiseram ter filhos entre as numerosas mudanças que não só a sociedade italiana, mas também brasileira e do mundo, enfrentam, como aquela do casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção e fecundação por terceiros e outras combinações que alteram o sistema parentesco tradicional.
— Durante as gravações, encontramos pessoas que, pela primeira vez, falaram sobre a escolha de não ter tido filhos na vida. Diziam isso nos agradecendo. Teve até uma psicóloga que nunca mergulhou tanto nas razões de não ter tido um filho na vida dela — observa Elisabetta, ressaltando que existem também homens a não querer ter filhos. A reflexão destas mulheres mexe com os comportamentos da sociedade, que conflui, inevitavelmente, na política.
Elisabetta e Daria sempre tiveram uma estética de empenho social. Conheceram-se graça aos Diario della Sacher, uma importante produção realizada pelo diretor Nanni Moretti, o qual produziu as obras das duas diretoras.
As temáticas tratadas em Sbagliate são claramente infinitas. Por isso, Elisabetta e Daria não quiseram chegar a nenhuma conclusão e deixaram em aberto todas as possibilidades. O vídeo, por enquanto, pode ser visto só em festivais. As autoras não conseguiram ainda uma distribuição, apesar de ser uma obra inédita e repercutir nos circuitos culturais. O caminho da consciência e da liberdade é longo, talvez eterno, inclusive para as sbagliate, as quais, como acreditava Miles Davis, não precisam se preocupar com seus erros, porque “não existem”.