Gestores da Mundipharma, o braço internacional da gigante Purdue Pharma, estão sendo investigados por um caso de corrupção na Itália sob a acusação de terem se unido a outros executivos de farmacêuticas para pagar a um famoso médico especialista em dor para que promovesse o uso de opioides. O país europeu há muito tempo não confia nesses poderosos analgésicos.
Esse é o primeiro caso conhecido fora dos Estados Unidos que implica criminalmente funcionários do império farmacêutico controlado pela bilionária família Sackler, mais de uma década depois de executivos da mesma Purdue serem condenados pela justiça americana por mentirem sobre a dependência de OxyContin.
Documentos das investigações obtidos pela Associated Press descrevem como uma aliança de gerentes farmacêuticos auto-intitulada “Liga contra a Dor” supostamente pagou o Dr. Guido Fanelli para ajudar a promover os analgésicos.
Os procuradores dizem que Fanelli teria redigido artigos, organizado conferências e contrariado os alertas das autoridades de que o consumo de opioides estava aumentando e que os médicos deveriam ser cautelosos. A mensagem propagandeada, a AP apurou, era de que havia uma epidemia de dor crônica, os opioides a resolveriam e os riscos de dependência seriam exagerados.
Essas são as mesmas práticas, segundo especialistas, que a indústria farmacêutica usou nos EUA e que ajudaram a criar uma crise de dependência que custou 400 mil vidas.
“Isso me dá mais nojo que qualquer outra coisa,” disse a deputada americana Katherine Clark, que enviou uma carta à Organização Mundial da Saúde em 2017 alertando que a Mundipharma já repetia as “práticas enganosas e perigosas” da Purdue. A empresa é alvo de mais de 2 mil processos judiciais nos EUA por propagandear opioides. A carta da parlamentar pedia ação da OMS antes que a epidemia americana se tornasse uma pandemia.
A descrição dos procuradores italianos oferece uma visão sobre como os executivos da Big Pharma ainda propagandeavam opioides no exterior mesmo depois de a causa e as consequências da epidemia dos EUA terem se tornado notórios.
Enquanto o mercado americano encolhe, o consumo de opioides sobe no exterior. Canadá e Austrália já estão seguindo o curso catastrófico dos EUA, dizem os especialistas, com taxas crescentes de dependência e morte. Outros países podem estar à beira da crise: As superdosagens estão aumentando na Suécia, Noruega, Irlanda e Inglaterra, aceleradas pela alta o aumento das receitas médicas e do tráfico ilegal. Pesquisadores brasileiros relatam que as vendas de opioides com receita médica saltaram 465% em seis anos.
O consumo de opioides na Itália aumentou, embora as autoridades afirmem que a alta dependência não tenha fincado raízes por conta de regras restritivas e um ceticismo cultural a respeito dos medicamentos — o Dr. Fanelli trabalhava para reverter ambos.
De acordo com as investigações, 464,000 euros da Mundipharma (por volta de R$ 2 milhões) e 640.855 euros da alemã Grunenthal (quase R$ 3 milhões) foram escoados para empresas abertas por Fanelli para esconder os pagamentos. Porta-vozes disseram que as empresas desconheciam o suposto esquema e acreditavam que os pagamentos se destinavam a legitimamente serviços prestados.
A rede de empresas da Mundipharma opera em 120 países, com uma divisão de mercados emergentes que já se expandiu para a Ásia, África e América Latina. A Grunenthal também comercializa medicamentos em mais de 100 mercados.
As empresas disseram que estão conduzindo amplas investigações internas e revisando suas políticas de conformidade e de ética. O representante da Mundipharma, Patrice Grand, afirmou que a empresa “se transformou e se redimiu” por conta do escândalo. Foram demitidos dois gerentes que os promotores alegam estar envolvidos, incluindo Marco Filippini, gerente-geral para o Sul da Europa.
A Purdue e a Mundipharma pertencem à família Sackler, composta por famosos filantropos que agora enfrentam uma avalanche de processos e críticas públicas por conta da promoção da OxyContin pela Purdue.
A Purdue concordou em pagar $270 milhões em um acordo no início deste ano em uma ação movida em Oklahoma, mas a empresa se defendeu de forma enfática.
O porta-voz Bob Josephson lembrou que neste mês um juiz indeferiu um processo similar movido na Dakota do Norte, alegando que a empresa não poderia controlar como os médicos prescrevem nem como os pacientes utilizam os medicamentos.
Outras centenas de processos estão em andamento, muitos alegando que a Purdue e outras empresas pagaram “importantes formadores de opinião”, frequentemente médicos reconhecidos especialistas em dor, para acrescentar dar um verniz científico à visão comercial de que os opioides são seguros e eficazes para a dor crônica.
As receitas médicas de opioides quadruplicaram entre 1999 e 2010 nos EUA e os casos de superdosagem aumentaram.
Caso Italiano
Na Itália, Fanelli foi chefe do departamento de anestesiologia e terapia da dor no Hospital Maggiore em Parma e se autodenominava pai de uma lei de 2010 que facilitou a prescrição de opioides, o que ele propagandeava como necessário para aliviar sofrimentos.
Os procuradores dizem que em 2009, enquanto ajudava a redigir o projeto de lei, Fanelli teria começado a se reunir com executivos das empresas com objetivo de vender mais analgésicos na Itália, incluindo Mundipharma, Grunenthal e companhias italianas, como Molteni e Angelini entre outras. Os representantes das últimas se recusaram a fazer comentários.
A polícia italiana descobriu o esquema durante outra investigação, e acabou grampeando o telefone celular e o do consultório de Fanelli.
“Eu criei um sistema”, disse o médico, segundo a polícia. “Este é o comércio da dor.”
Além da publicação de artigos com posição pró-opioide, ele também organizou uma conferência médica que os procuradores descreveram como sendo “de ponta cabeça”. O diretor do evento deveria escolher os palestrantes e os temas, mas Fanelli, segundo os procuradores, entregou essa tarefa às empresas.
Além disso, dizem os procuradores, o médico armou um esquema com uma organização sem fins lucrativos que promoveria uma viagem por 16 cidades para falar sobre o sofrimento da dor crônica e como os opioides devem ser usados para o tratamento. O presidente do conselho do grupo sobre dor era o gerente de marketing da filial italiana da Mundipharma.
“Eles estão usando o mesmo manual que funcionou nos EUA”, disse Andrew Kolodny, diretor-executivo de uma organização de médicos pela prescrição responsável de opioides. “(Estão usando) apesar de saberem que isso levaria a uma catástrofe na saúde pública”.
Grand, porta-voz da Mundipharma, nega a acusação. “Não existe esse tal manual”, afirmou, acrescentando que as filiais da Mundipharma e a Purdue têm gerentes e portfólios diferentes e não compartilham as mesmas estratégias entre si.
Grand afirmou ainda que a operação europeia já parou de promover o uso de opioides, que agora representam menos de 40 por cento das vendas europeias da Mundipharma, segundo ele.
Dois executivos da Mundipharma, Filippini e Ricardo Cerbai, diretores comercial e de marketing na Itália, fecharam acordos de delação premiada em janeiro, embora o advogado que os representa alegue que isso não configura admissão de culpa. Grand disse que os dois foram demitidos em setembro. O porta-voz disse ainda que a empresa não confessa culpa apesar de ter aceitado uma multa de 40.000 euros.
A Grunenthal Itália foi multada em 50.000 euros. O porta-voz da Grunenthal, Stepan Kracala, disse que a empresa, que opera principalmente na Europa e na América Latina, instaurou um novo código de conduta, incluindo um telefone para denúncias de funcionários. Ele afirma que a empresa está comprometida com a transparência sobre o risco de dependência causado por seus medicamentos.
Vários executivos da Grunenthal foram citados na investigação; os seus advogados insistem que são inocentes no caso. Após uma série de audiências um juiz decidirá se eles serão transformados em réus.
Fanelli, por meio do seu advogado, recusou-se a fazer comentários. Ele foi suspenso do trabalho sem direito a salário e está impedido de clinicar até a conclusão do caso.
(Com informações da Associated Press)