Comunità Italiana

Marco infinito

Escritor e poeta ítalo-brasileiro Marco Lucchesi alcança a façanha de entrar para a Academia Brasileira de Letras aos 47 anos

{mosimage}Diante de um público que lotou o Salão Nobre do Petit Trianon, na Academia Brasileira de Letras, no centro do Rio, na noite do dia 20 de maio, o escritor ítalo-brasileiro Marco Lucchesi tomou posse na cadeira de número 15, que pertenceu ao Padre Fernando Bastos de Ávila, falecido em 2010. Membro mais jovem já eleito pela ABL, Lucchesi fez questão de dizer em seu discurso de posse que “questões de idade nunca lhe interessaram” e que se considera um dos mais “velhos” membros da entidade. O presidente da ABL, Marcos Vinicious Vilaça, afirmou que a chegada do escritor, dotado de erudição ecumênica, constitui uma contribuição das mais valiosas para o quadro da Academia.

— Jovem e brilhante, certamente ele irá contribuir para os nossos projetos e propostas. O que espanta é que não estivesse na Casa há mais tempo. Sua obra é sua busca — declarou. 

Autor de livros em português e italiano — entre eles Meridiano celeste & bestiário, finalista do Jabuti de 2007, e Lucca dentro, que levou o prêmio da Câmera de Comércio de Lucca — o escritor se define, nesta entrevista à Comunità, “um brasileiro recente”, que nasceu “anfíbio”, com “duas línguas e dois corações”. Ele conta que aprendeu amar a língua portuguesa duas vezes, como brasileiro e filho de italianos.

Comunità Italiana — Como você recebeu a notícia da sua eleição para a cadeira de número 15, sendo o integrante mais jovem da Academia Brasileira de Letras? O que ela significa para você?

Marco Lucchesi — Fui recebido de modo generoso na Casa de Machado. Não pelos 34 votos dos 38 possíveis, ou pelo fato de entrar aos 47 anos. Mais que os números, o gesto simbólico e a amizade. Sou apenas um leitor. Contundente? Contumaz. Serei o acadêmico mais velho da Casa, ao passo que Cleonice Berardinelli ou Evaristo de Morais serão decerto os mais jovens.  Gosto de lembrar de Evandro Lins e Silva, uma das figuras de proa da história do Brasil, que há mais de uma década lançou meu nome para a ABL. Significa prosseguir no trabalho e na paixão da literatura.

CI — O italiano, para você, é uma língua materna, devido às origens da sua família, e o português, o idioma de “fora de casa”, do convívio social. Pode explicar um pouco como esse bilinguismo influenciou na sua produção literária? E como você percebe a influência do idioma italiano no seu português?

ML — Sou um brasileiro recente. Nasci anfíbio. Tenho duas línguas e dois corações. Metade adesão. Metade abandono. Trégua feroz. E surda guerra. Um solo a duas vozes. Violino e contrabaixo. E já não sei qual dessas vozes melhor me pronuncia. Um verso de Luzi e outro, de Drummond. As fontes de Roma e o Maracatu de Mignone.  Duas pátrias e duas línguas. A primeira veio dos olhos castanho-claros de minha mãe, onde sorvi a língua toscana: a melodia sinuosa das colinas que impedem que os de Lucca vejam os de Pisa, como disse Dante; o aroma puríssimo do azeite das terras de Massarosa e o céu em chamas à beira do crepúsculo; verbos e palavras antigas, como acquaio, brago e polla, que se entrelaçam com a espessa vegetação do lago de Massaciuccoli; a altura das vogais, como a da torre da igreja de Pieve a Elici, onde me perco num sonho de ascensão. Minha memória absorve passagens da Divina comédia, como a de Paolo e Francesca.

A outra língua é a portuguesa, a que aprendi a amar duas vezes, como brasileiro e filho de italianos. Língua de matriz antiga, de ínvios mares e sertões bravios, como do Esmeraldo de situ orbis; subúrbios da Leopoldina e praias antigas, como Icaraí, Adão e Eva, Jurujuba; língua de nações indígenas e africanas; língua de Vieira, contra as armas de Holanda; do magma de Guimarães Rosa; das tempestades que varrem a obra de Clarice; do abismo em que flutua o delírio de Brás Cubas. Todos repercutem em meu destino de escritor. São estes os fantasmas que habitam minha nau peregrina. Vivo um atlântico de extremos. Naufrágio e calmaria. Destino e perdição. Qualquer coisa de intermédio que vai de mim para o outro. Da máquina do mundo ao amor de Francesca. Donde essa paixão visceral por Dante e Camões. Sou como um duplo cercado de espelhos. Imagem perdida na Ilha dos Amores ou na praia do Purgatório. Vasco e Virgílio. Afinal, amor meus, pondus meum. Meu amor é meu peso. E quanto a mim, não tenho outra saída senão a de multiplicar por dois minha densidade rarefeita.

CI — Você fala quantos idiomas? E como esse multilinguismo, essa alquimia de palavras, afeta sua vida pessoal e seu modo de conceber o mundo e os seus pensamentos?

ML — Como lembra Evanildo Bechara, temos de ser poliglotas em nossa própria língua. Que é o que importa sobretudo. Ótima definição: alquimia de palavras. Teatro alquímico. Não sei quanto afeta ou desafeta. Mas é um dado forte. São dezesseis aproximadamente. O importante não é dominar uma língua, mas que a língua nos domine. O que é muito árduo. Importa-me chegar aos sons da literatura de outros sistemas e países. Cada língua é uma paisagem fulgurante.

CI — O Oriente e o deserto são temas recorrentes em suas obras. Poderia nos explicar de onde surgiu esse interesse? O que o deserto simboliza para você?

ML — Foi uma fase longa que não se encerrou de todo. Do deserto físico, e foram tantos, em uma década, ao sertão profundo. O deserto é uma espécie de imagem aberta, acerca da qual tudo se pode dizer. Ou silenciar. Lembro da tempestade de areia em Riade, na Arábia, em 2009. Tanta poeira em meus olhos, uma nuvem imensa. E desde então vejo as coisas diferentes. Mas é o deserto da Síria, sobretudo. E das vastas solidões. E do diálogo.

CI — Qual ou quais os escritores italianos que mais o influenciam e por que? E os brasileiros?

ML — Todos influenciam. Ótimos, péssimos e bons. Sempre aprendemos. O que se pode e o que não se deve fazer. Minha dívida é enorme, conto com a amabilidade de meus tantos credores.

CI — Você recebeu, em 2001, o Premio Nazionale per la traduzione do Ministero dei Beni Culturali da Itália. Em uma de suas afirmações, você disse que se considera mais que um tradutor – alguém que busca uma das formas de expressão mais intensas e genuínas. Poderia falar um pouco sobre as dificuldades e alegrias do trabalho do tradutor, principalmente no que se refere ao italiano-português?

ML — Essa é uma questão interessante. Eu afirmava na ocasião minha identidade de leitor. De que também a tradução é parte. Como é difícil trabalhar entre duas línguas de que se é bilíngue. Num certo sentido para mim foi mais fácil traduzir do russo ou do alemão. O que é próximo é mais distante. E o que é distante, próximo. Mas insisto que o essencial é o diálogo da literatura com o mundo e com as ideias.

CI — Está trabalhando em algum novo projeto, algum livro novo? Se sim, poderia nos contar?

ML — Trabalho diuturno com um romance. E uma tradução bem ampla. Mas sou muito reservado nesses assuntos.

CI — Seu trabalho como professor universitário o deixa em permanente contato com a escritura das novas gerações. Como vê a forma com que juventude brasileira escreve hoje?

ML — Bem. Muito bem. Na Universidade e fora. Dirigi a revista Poesia Sempre e preparei diversas antologias, dentre as quais uma que saiu pela Global. Vejo muitas vozes importantes. Nascentes. Não vou citar uma lista, por motivos de segurança, mas os nomes não são poucos, não se concentram no sudeste, e pertencem a várias gerações.

CI — Para você, qual é a obra sua que guarda mais significado com a sua relação com a cultura italiana? E por qual motivo?

ML — Creio que em todas se reflete essa presença. Mas é claro, nos livros em que escrevi diretamente em italiano, como Poesie, Lucca dentro, Hyades e La gioia del dolore. A minha cultura italiana é essencialmente toscana. Da Maremma. Ou da Versilia. E Florença. E Lucca.

CI — O Brasil tem estado em evidência, nos últimos anos, em nível global, devido ao seu avanço econômico. Você vê essa ascensão se refletir na vida cultural e literária do país?

ML — Claro. O sistema literário fica mais forte. Mais espaços. Maiores desafios. As bibliotecas se espalham pelas escolas. O importante agora é assumir um compromisso profundo com a qualidade da educação. Tenho alguma esperança.