O movimento italiano Decrescita Felice defende que a qualidade de vida não depende do PIB e estimula os cidadãos a substituírem produtos por bens autoproduzidos ou trocados com outras pessoas
Para entender o Movimento Decrescita Felice (MDF), é preciso primeiro esclarecer o que significa crescimento econômico. Em geral, acredita-se que o crescimento econômico consiste no aumento da capacidade produtiva da economia, portanto, da produção de bens e serviços de determinado país, definido pelo índice de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB).
— O PIB mede a quantidade dos produtos comprados e vendidos sem considerar se são úteis ou danosos. No caso da gasolina consumida no tráfego quando você está preso num engarrafamento, o PIB cresce, mas o seu bem-estar diminui. Por outro lado, há também o efeito contrário: na minha família, temos uma horta há 15 anos, na qual cultivamos frutas e verduras que satisfazem as nossas necessidades alimentares. Mas isso não faz crescer o PIB, ou melhor, até diminui, pois a demanda da mercadoria de frutas e verduras se reduz — relata à Comunità o fundador do MDF, Maurizio Pallante. Ele usa esses exemplos para explicar que não se trata de um indicador de bem-estar, porque mede como positivos os fatores negativos, os desperdícios, e não considera como positivos a autoprodução e a economia baseada no dom e na reciprocidade.
— A causa da crise que estamos vivendo é o crescimento. E se o crescimento é a causa, não pode ser a solução — afirma Pallante, que acredita no decrescimento seletivo do desperdício como única forma de sair da crise.
O italiano fundou o MDF em 2007, mas a ideia nasceu antes, em 1988, quando conheceu um responsável pelos serviços termotécnicos do centro de pesquisa Fiat. Ele lhe explicou que a redução da poluição, associada ao uso de combustíveis fósseis, não depende principalmente da adoção de fontes renováveis, e sim da redução do desperdício.
— O sistema italiano, análogo a muitos países industrializados, desperdiça 70% da energia que produz. Não faz sentido produzir energia com fontes renováveis e desperdiçar 70%. Somente se reduzirmos o desperdício faz sentido desenvolver as fontes de energia renováveis, pois estas custam mais e rendem menos que os combustíveis fósseis — comenta Pallante, especialista em economia da energia.
A autoprodução de bens como princípio
O movimento visa promover a maior substituição possível de bens industrializados e adquiridos em circuitos comerciais de grande escala, com bens oriundos de autoprodução de mercadorias ou produzidos localmente ou trocados sob a forma de doação. Tal escolha implica uma redução do PIB a favor de melhor qualidade de vida. O fundador do MDF salienta que o decrescimento não é sinônimo de recessão e utiliza um exemplo para explicá-lo: uma pessoa que não come porque não tem nada para comer não faz uma escolha, enquanto outra pessoa que não come para fazer uma dieta faz uma escolha para ficar melhor. Pallante usa esse simples exemplo para explicar a diferença entre a mudança forçada de um estilo de vida devido ao esgotamento de recursos necessários para alimentar-se e a decisão consciente de quem escolhe um caminho diferente, sustentável e justo.
O movimento é organizado em centros espalhados por todo o país e oferece uma abordagem diferente para a política, tecnologia e estilo de vida. Um dos fundamentos é a autoprodução.
— Eu considero a autoprodução um conceito extremamente subversivo de alguma forma, pois permite substituir produtos que deveriam ser comprados porque precisamos e repensá-los de forma natural — afirma à Comunità Lucia Cuffaro, vice-presidente do MDF e presidente do núcleo romano do movimento.
Cuffaro conta que sua vida mudou completamente em 2010, quando começou a participar da associação. Antes, ela era assistente de produção dos programas da Rai, mas teve um problema de saúde que se complicou devido ao estresse. Foi quando ela pediu demissão do emprego. Depois, passou a trabalhar para a organização Città dell’utopia e se aproximou do movimento. Cuffaro se envolveu na divulgação de reflexões sobre o tema do decrescimento e se tornou especialista em autoprodução, trabalho pelo qual foi reconhecida até mesmo pela sua antiga empregadora, a Rai, que lhe fez uma nova proposta de trabalho: apresentar o quadro Chi fa da sé, dentro do programa Una mattina in famiglia. Cuffaro ensina receitas e dicas de autoprodução doméstica de baixo custo com poucos ingredientes, todos saudáveis e naturais.
— A autoprodução permite economizar até 95% em muitas coisas — declara a enérgica e jovial vice-presidente do MDF.
E quem pensa que é preciso tempo para colocar em prática os seus conselhos, Cuffaro responde com um exemplo prático.
— Às vezes é mais conveniente fazer algo caseiro do que ficar na fila do supermercado, como no caso do pão, que pode ser feito uma vez por semana. O tempo de atividade manual que eu calculei, sem o cozimento, é de apenas sete minutos — exemplifica.
Em 2014, Cuffaro escreveu o seu primeiro livro, Fatto in casa, smetto di comprare tutto ciò che so fare (Feito em casa, paro de comprar tudo o que posso fazer). Apenas no primeiro dia, foram vendidos 350 mil exemplares. Além disso, Cuffaro trabalha como técnica na Câmera italiana dos Deputados, e se ocupa de redução de resíduos e questões ambientais.
— Muitas pessoas que participam do Movimento Decrescimento Feliz entraram na política, embora não como representantes políticos, e sim como técnicos, trabalhando na Câmara e no Senado — relata.
Universidade ensina disciplinas como reciclagem e economia de doação
O movimento não consiste apenas em ser uma crítica ao modelo de crescimento atual, mas também estuda soluções teóricas e fornece ferramentas práticas para construir alternativas sustentáveis. Por isso, em 2009, nasceu em Turim a Università del Saper Fare (UNISF), com a intenção de aproximar as pessoas às ideias e às práticas do Decrescimento através de workshops práticos.
Figuram entre as disciplinas autoprodução, reciclagem, reuso e autoconstrução, mas também se aprende a se relacionar melhor com a comunidade através do curso de economia da doação
— A universidade não é um lugar físico: é um projeto itinerante desenvolvido por todos os centros do MDF espalhados pelo país — explica Cuffaro, docente da UNISF.
O projeto dá a possibilidade a pessoas com competências e habilidades em um determinado tema de torná-los disponíveis gratuitamente, com uma variedade de cursos que vão de fabricação de cosméticos a reparos elétricos, além de aprender a fazer desodorante, usando apenas bicarbonato, maizena e o óleo essencial Tea Tree, entre outras coisas.
As pessoas que participam dos cursos e do movimento pertencem a diversas faixas etárias, dos 20 aos 70 anos. O grupo extremamente pragmático se encontra por afinidades ideológicas e valores.
Tecnologia deve ser aplicada para evitar o desperdício e não para aumentar a produção, defende o movimento
Outro ponto importante abordado pelo MDF é o desenvolvimento tecnológico.
— Atualmente, o desenvolvimento tecnológico tem como finalidade aumentar a produção, enquanto nós gostaríamos que fosse utilizado para reduzir o desperdício de recursos, ou seja, aumentar a eficiência com que os recursos são utilizados — destaca Pallante.
O italiano cita como exemplo a Nova Somor, uma bomba que extrai água do subsolo para irrigação sem a utilização de eletricidade e que já passou da fase do protótipo e está começando a ser comercializada. Pallante explica que o decrescimento não deriva só da autoprodução ou das melhorias das tecnologias: se trata de uma filosofia de vida que abraça muitos aspectos.
— Nós estamos convencidos de que chegamos ao fim de uma época histórica, iniciada muitos anos atrás com a revolução industrial. Se não formos capazes de optar pelo decrescimento, haverá um colapso, como aconteceu no fim do Império Romano, só que desta vez será muito mais dramático — afirma o fundador do movimento. Da mesma opinião, Cuffaro acredita que a ideia de uma economia que produz de forma ilimitada para criar sempre novas necessidades chega sempre a um ponto de não retorno e provavelmente “uma crise que já dura há tantos anos não é uma crise, talvez seja um status quo, o que significa que chegamos à saturação”.
O fundador do movimento cita como fato importante a recente encíclica Laudato si do papa Francisco, em que aparecem muitos elementos comuns ao Decrescimento.
— O Decrescimento não é mais visto como uma loucura de alguns sonhadores, mas é visto através das questões, como o uso diferente das tecnologias e uma diferente impostação dos modelos de comportamento e de valores entre as pessoas — salienta o ex-presidente do MDF, que atualmente se ocupa do Comitê científico do movimento.
De acordo com Cuffaro, atualmente, existem diferentes centros também fora da Itália, como na Espanha, França e Inglaterra, mas somente na Itália existem associações e grupos operando no território de forma concreta. O fundador está convencido de que é possível exportar o movimento a outros países, como o Brasil. Pallante já foi convidado pela ONG italiana ParaTi para dar palestras no Rio de Janeiro, mas infelizmente tiveram que adiar para o próximo verão, pois ele está terminando o seu livro, cujo tema será a política e as dinâmicas da direita e da esquerda a partir da ótica do decrescimento.
Os dez princípios do Decrescimento Feliz
1 Diminuir a distância entre produção e consumo, tanto em termos físicos quanto humanos.
Fazer compras diretamente do produtor e estabelecer relações de amizade e confiança com quem produz.
2 Redescobrir o ciclo das estações e a relação com a terra.
Reaprender o gosto de esperar pela estação certa para comer as frutas, quando são mais saborosas e nutritivas.
3 Redefinir a própria relação com os produtos e as mercadorias.
Substituir o máximo possível as mercadorias com os bens autoproduzidos: alimentos como iogurte, pão, sobremesas, licores e enlatados, e outros bens como roupas e móveis.
4 Reconstruir interações sociais através da lógica da doação.
Doe sua experiência, seu conhecimento e seu tempo para os outros.
5 Fazer comunidades.
Criar ocasiões regulares para tornar as relações humanas estáveis ao longo do tempo.
6 Prolongar a vida das coisas, recusando a lógica do “último modelo”.
Adotar um estilo de vida baseado nos quatro R (reduzir, reutilizar, recuperar, reciclar) e comprometer-se a espalhá-lo ao máximo.
7 Repensar a inovação tecnológica.
Adotar tecnologias que reduzam o consumo de recursos naturais, preferindo a inovação direcionada à economia, em vez daquela destinada ao aumento do consumo.
8 Existir, pesando o mínimo possível sobre o meio ambiente, como uma forma de máximo respeito para consigo e as gerações futuras.
Minimizar a sua pegada ecológica, reduzir o uso dos meios de locomoção próprios e substituí-los por transporte público ou veículos menos poluentes.
9 Redefinir a própria relação com o trabalho.
Redefinir o trabalho assalariado como meio para satisfazer parte de suas necessidades e não como o fim da existência.
10 Divulgar os princípios do Movimento na área da política. Organizar reuniões públicas, envolver os cidadãos em batalhas específicas e evitar qualquer tentativa de exploração das ideias e propostas do Movimento.