O esporte dele é a curiosidade. De mochileiro a mestre de cerimônias olímpicas, Marco Balich, italiano, nascido em Veneza 53 anos atrás, completa um ciclo com o Brasil, aberto em 1982. Quando era jovem, viajou de Búzios a Belém, passando por Trancoso, de ônibus. Ele se mudou de malas e ideias para a Cidade Maravilhosa, onde desembarcou no dia 1° de dezembro como produtor executivo das celebrações dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, realizadas pela Cerimônias Cariocas 2016 (CC 2016). “Adoro aquele centro com os prédios coloniais”, comentou em entrevista exclusiva à Comunità. Balich vai precisar de toda a sua experiência e sangue frio acumulados desde 2002, quando dirigiu a cerimônia de passagem dos Jogos Olímpicos de Inverno, de Salt Lake City, dando sequência na abertura dos Jogos invernais de Turim, quatro anos depois. Finalmente, chegou a Londres, em 2012, novamente como diretor da festa de passagem, e comandou a abertura e o fechamento da Olimpíada de Sochi, na Rússia, em 2014. Nesse meio tempo, celebrou o bicentenário do México e, nesse ano, criou o ícone da Exposição Universal de Milão, a Árvore da Vida.
A sede da sua empresa fica no centro histórico de Milão, ao lado de um antigo canal de navegação aberto por Leonardo da Vinci. O interior é um imenso open-space, onde trabalham cerca de 30 pessoas, número que, numa Olímpiada, se multiplica e chega a 700 colaboradores, entre pessoal da técnica, da criação e da organização. A empresa coroa um garoto que amava o Pink Floyd e abandonou os estudos de Direito para seguir a banda como assistente. Depois vieram U2 e outros eventos. “Da cosa nasce cosa”, repete o italiano que, recentemente, organizou o casamento de um marajá.
Da Veneza do carnaval ao Rio carnavalesco, Marco Balich realiza um salto quádruplo e “imortal”, sem rede. Sabe que a pouca verba à disposição o obrigará a espremer o cérebro. Está ciente de que a festa de abertura e fechamento de uma Olímpiada, num país normal, deve começar dois anos antes: ele sabe o que tem pela frente. Não é um principiante. Mesmo assim está otimista. De voz mansa e fala tranquila, atributos raros para um italiano, Balich se prepara para o desafio da sua vida. E lamenta não poder revelar, ainda, os detalhes da festa em programação, para quem era suficiente guardar três ou quatro segredos. Ele não pode ver a hora de ter “uma margem maior de conversação para ilustrar todo este processo fantástico que estamos fazendo para tirar temas importantes do Brasil e de lê-los de forma popular e não populista”, resume o italiano, sabendo que, como o clima não está para festa, é preciso uma para se resgatar a confiança no amanhã.
ComunitàItaliana — O senhor está dormindo bem? Está tendo mais sonhos ou pesadelos?
Marco Balich — Por enquanto, sim (risos). Mas daqui a pouco… Sabe o que é? Se você não está acostumado com estes grandes eventos, é fácil pensar “temos tempo, falta ainda um ano”. A diferença é que, se você encomenda um vestido faltando 12 meses a quem o fará, dando-lhe o prazo de quatro meses, lhe paga dez euros por vestido, se a encomenda chega faltando um mês, obrigatoriamente, vai pagar 30. Tudo se resume a este exemplo. E ainda vai haver menos coisas. Ou seja, quanto mais cedo se programa e se decide, maior é a possibilidade de fazer melhor as coisas, mais pensadas, mais elaboradas. É sempre assim: a Itália terminou a montagem da Expo na noite da véspera da abertura, não somos os campeões do mundo. E nisso somos muito semelhantes ao Brasil e diferentes dos ingleses. Mas te digo que vai ser uma aventura belíssima e eu confio, verdadeiramente, que toda esta paixão e energia podem ser traduzidas numa verdadeira mudança de passo. Estou muito otimista sobre isso.
CI — Qual é o segredo de uma cerimônia olímpica?
MB — Contar coisas importantes de uma nação, de um povo, de modo espetacular… Você escolhe um tema, por exemplo, na Rússia, o circo, ou Chagall. Se você o trata de maneira superespetacular, torna-o digerível. Em Turim, apresentamos a cidade industrial de um modo muito espetacular, com máquinas cênicas que se conectavam com o espírito olímpico e que contavam a engenharia e, ao mesmo tempo, a beleza da carroceria. Todo um mundo assim, narrado de um modo espetacular. O segredo é contar coisas simples sem torná-las muito complicadas. Elas precisam ser compreendidas em um vilarejo na Africa e no Palácio da Rainha, em Londres.
CI — E como se compreende?
MB — Apresentando coisas simples, a exemplo de temas como a paz, a fraternidade, o DNA de um povo, ou qualquer episódio histórico, mas apresentado de uma forma surpreedente.
CI — E quando te surpreende?
MB — Quando você volta a ser uma criança, quando uma criança se ilumina com os fogos de artifício. Porque recuperamos aquela magia de olhar para o alto e nos surpreendermos. E isto é o que queremos criar. Olhar para cima não é apenas uma ação física.
CI — A criança Marco Balich, quando ia para a escola, que ideia tinha do Brasil?
MB — O Brasil sempre foi alegria para mim. Nunca foi algo diferente. E depois tem a Amazônia, onde eu estive nos anos 1980, quando tinha o cruzado, que mudava de valor ao longo do dia. Pela manhã alugava um carro, enchia o tanque e o preço do litro estava escrito num quadro-negro porque à noite mudava de valor. Era 1982, eu acho. Foram quase dois meses viajando. Fiz um giro com a mochila nas costas. Búzios, Trancoso, Porto Seguro, toda a Bahia… Foi uma aventura belíssima. De ônibus, com os balseiros, de kombi com 30 dentro. E ainda tinha o rio. Subíamos numa balsa. Com remo e corda chegávamos do outro lado da margem… Uma loucura.
CI — Entrando aqui, eu li o slogan e título de um antigo projeto, We are the World, We are the Children. A criança Balich está muito bem e vivaz?
MB — Tudo aquilo que fazemos é filtrado por todas essas coisas que nos surpreenderam quando éramos crianças. Não adianta ser um superintelectual neste tipo de cerimônia. No teatro, numa ópera, isso pode ser necessário porque a obra exige uma leitura maior. O que propomos são esses temas de estupor infantil e apresentados de forma grandiosa. Que é aquilo que faz a coisa parecer uma magia. Quando se alcança isso, você toca o coração das pessoas.
CI — O senhor nasceu e cresceu em Veneza. Terra do carnaval, da beleza, do encontro de culturas, por excelência. Quanto tem de Veneza no seu percurso?
MB — Alguns anos atrás eu fui o diretor do carnaval de Veneza. Quando eu participei da seleção para a candidatura ao Rio, eu disse, da cidade do carnaval para a cidade do carnaval, seria um grande prazer poder trabalhar. Em Veneza, crescemos com a beleza nos olhos. É uma cidade muito estranha e conta muito com os encontros, com as figuras humanas, a arte, a história. É o local ideal para se concentrar não sobre coisas como carros, motos, estas coisas dos jovens de 18 anos, mas sim sobre a beleza, a troca de interesses. Para nós, o evento elegante é a abertura da Bienal de Veneza e não um grande prêmio (de F1). Há uma bela diferença. Oferece uma outra prospectiva do mundo e que ajuda muito. A curiosidade pessoal é que te leva.
CI — Como foi a direção do carnaval de Veneza?
MB — Eu estava de volta depois de ter produzido grandes eventos, e fui a Veneza, e disse, fazemos isso, fazemos aquilo, mudei um monte de coisas e me massacraram (risos…). Acho que é assim quando voltamos para casa, me massacravam, a cada dia. Ma che cazzo vuole che ci cambia tutto, perguntavam.
CI — Tudo nasceu com o Pink Floyd?
MB — Eu estudava (Direito) e sabia inglês. E surgiu a oportunidade através de um promoter que procurava um “ band assistent”, e eu fui, fiquei girando por quatro anos, com bandas de todos os tipos. Eu venho de uma família normal, não rica, e caí neste mundo de carrões, concertos, hotéis. Logo eu, que acampava nas férias. Tal mudança me agradou muito. Mas, acima de tudo, gostei da possibilidade de convergir tantas disciplinas para um momento tão exaltante, colorido e de grande atração. Às oito da noite, tudo deve estar pronto, os bilhetes, a segurança, os cartazes, o palco, o camarim, a corrente elétrica, a banda. E você aprende esta conversão. Depois, cresce até uma cerimônia olímpica, parte dois anos antes, com as roupas, a música, a coreografia, os voluntários, a parte técnica, a luz, o som, o show-control, o palco…Tum tum tum e se chega ali.
CI — Por que o senhor diz que na cerimônia tem sorte?
MB — Pelo tipo da minha aproximação, porque permite ser muito aberto, flexível e adaptado àquilo que se quer contar. Por exemplo, a linguagem que se usa na Rússia não pode ser a mesma que se usa no Brasil. Um é mais forte, o outro é mais de envolvimento, ao final, o que conta é a emoção, ela deve chegar e é isso que me interessa. Pessoalmente, é o que me estimula. Não é o dinheiro. Ao contrário, é difícil se mudar por 10 meses, deixar a família, os filhos (Marco Balich tem quatro filhos entre 9 e 16 anos). Mas sei que aquele golpe de emoção é algo extraordinário.
CI — Públicos diferentes pelo mundo desejam a mesma coisa?
MB — Não, eles querem se emocionar e se sentir orgulhosos do próprio país. Querem uma releitura da própria identidade. Aconteceu aqui na Itália quando eu fui o diretor artístico do interior do pavilhão nacional da Expo Universal. E chegam as vozes ma cosa vuole? Eu respondia: “Deixem-me construir um espetáculo, a Árvore da Vida”. As respostas eram ma no, no e no. Ao final, aceitaram a ideia. Por fim, venceu a emoção. Fomos bons. Se você consegue convencer os russos disso, ajuda neste processo.
CI — Nos últimos anos, a tecnologia fez passos gigantescos na sua atividade. Uma tecnologia fria que serve para criar espetáculos quentes. O quanto ela incide na criação?
MB — Nós a usamos. Como um telefone que serve para telefonar. Mesmo que, a cada dois anos, tenhamos acesso a um novo modelo. Mas a ideia é sempre como comunico e o que comunico. O objetivo é aquele de comunicar mais facilmente e de emocionar. Se você fica fascinado apenas pelo aparelho em si, não sei… Se você assiste a algo colossal em tecnologia, sem emoção, sem conteúdo, depois de três, quatro anos, vai parecer algo muito estúpido. Enquanto que um gesto, como a flecha que acende o fogo em Barcelona, mesmo não sendo tecnológico, vai ficar sempre no coração como algo maravilhoso. Como Mohammed Ali, que tremia ao acender o caldeirão de Atlanta.
CI — Como é a sua relação com a mídia? Estou diante de um homem ressuscitado tantas vezes?
MB — Levamos bastonadas, sempre (risos). Aqui na Itália, eu fui atacado por um ano. “Mas quem é você, o que quer, o que é isso”, me diziam. Nós nos habituamos. Qualquer grande evento é um elefante que entra num quarto. Todos dizem: che cazzo è questo elefante. Depois, devagarzinho, quando a coisa parte, as pessoas entendem que aquele elefante serviu para alguma coisa. Você desloca equilíbrios e sonhos importantes. E tem sempre a questão de que uma cerimônia olímpica, na cidade do México, custa tanto, 50, 100 milhões. Tanto, e torcem a cara dizendo que podem-se construir hospitais e escolas. Mas eu já estou preparado para isso, e olho sempre as despesas militares de uma nação. A cada ano, qualquer nação compra, no mínimo, entre 10 a 20 helicópteros e aviões, que custam em média de 20 a 80 milhões de euros. Depois um deles cai, talvez, num exercício, no mar… Bem, o que é mais importante: ter algo que te faça reaver o orgulho e a dignidade para uma nação ou comprar um avião a menos? Cada tanque de guerra custa cerca de três a quatro milhões de euros. Compram 20, talvez renuciem a três tanques. A isto tudo eu me acostumei. Efetivamente é muito dinheiro, mas se você trabalha o orgulho de uma nação, depois, o povo orgulhoso vai tratar melhor o próprio país, vai trabalhar melhor, e este é um processo virtuoso. Depois existe a corrupção; no campo da construção civil tem sempre aquele que tenta ser o mais esperto, porém, não se pode generalizar com todos.
CI — Churchill respondeu, a quem pedia para desviar a verba da cultura para o esforço de guerra: “Então, por qual razão eu estou combatendo senão pela cultura?”
MB — Porque é verdade que podem-se construir mais hospitais, ok, construam-se hospitais de qualquer forma, mas não renunciemos a celebrar a nossa própria identidade. Existem os parasitas. É difícil chegar a um consenso, a Árvore da Vida, ao final, foi toda patrocinada, boa parte pelo Orgoglio Brescia (um consórcio de empresas). As pessoas se viram naquela coisa (uma enorme escultura de madeira, palco de espetáculo de luz e som), e aplaudiam um objeto. Quando tocar ali, no coração, faz bem a um povo, a um grupo de pessoas, porque os comove, induz a pensar que gostam desta terra e pensam: “Não enterremos a escória nuclear aqui embaixo porque gostamos daquilo que somos”. É um investimento a longo prazo em uma nação. Então, eu sou a favor de escolas e hospitais, mas acho também que, sem nenhum temor, existem muitos exemplos belíssimos de cultura popular. Mesmo a Árvore da Vida não tem a menor pretensão de ser intelectual, para quem quisesse lê-la assim; tinha a arte, sim, mas eu não queria que fosse algo que um crítico muito evoluído dissesse “que genial”; eu queria que a gente olhasse, sonhasse.
CI — O estereótipo é uma armadilha?
MB — O estereótipo é algo importante. Diz-se que a Itália é pizza e mandolino (bandolim napolitano), ou ópera e mesa. Pois bem, Itália é ópera e alimento; não temos que ter medo, temos outras coisas, mas não temos que escondê-las; não somos apenas o design Cappellini, somos também o spaghetti, somos também Pavarotti. Claro, os estereótipos devem ser narrados, contados, de forma muito importante. Se o Brasil falasse de si sem o carnaval, seria um erro. Ignorar um lugar comum apenas porque parece banal significa que você não está à altura de enfrentar aquele tema, segundo a minha opinião.
CI — Pode ser um ranço de país colonizado, onde repetem “Chega de falar somente disso ou daquilo”…
MB — Sim, mas isso deve ser enfrentado de forma espetacular, valorizada. Na Rússia tinha uma parte que remetia à União Soviética, não se pode ignorar ainda que tudo tenha sido modificado, ou os grandes escritores, você não pode ignorá-los somente porque você quer contar que foi à lua. Você não deve ter medo de ser aberto e largo, generoso. Porque depois, se apenas três pessoas te entendem, que sentido tem? Talvez sejam os mesmos que escrevem as críticas, mas se você não toca o coração… No começo, a crítica era bem contundente, depois viram que cada vez mais pessoas se aproximavam da Árvore da Vida e os jornalistas, efetivamente, começaram a rever seus pontos de vista. Tinha o pavilhão do Brasil, que era belíssimo, com a rede. Uma ideia simples e inteligente, falava da natureza, tinha sempre fila, funcionou bem. De fato, eu contei ao time criativo brasileiro que veio aqui, o Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington, e notei uma certa suspeição; então eu reforçei que tinha sido algo inteligente e simples.
CI — Como vai o quartel-general carioca?
MB — Estamos no centro da cidade, do qual eu gosto muito. Tudo ali é colonial. Temos um grupo muito bom de trabalho, tem o Porto Maravilha, que é um pouco perigoso à noite, mas nós, italianos, estamos acostumados. Se vamos a um lugar em Nápoles, bem, uma pessoa não vai ali com um celular ou um relógio no pulso… Veja Paris… Vivamos a nossa vida. O azar chega. Mas não devemos procurá-lo; desaconselho viagens à Síria. Aliás, meus pais lá estiveram e me contaram que é um país maravilhoso.