O cirurgião-plástico não deixa apenas saudades: deixa também um legado vigoroso, capaz de sinalizar novas direções nas faculdades de medicina e demarcar a presença de uma nova prática holística, profunda e solidária
Das trilhas abertas pelo doutor Ivo Pitanguy, avulta não somente a criação de um conjunto de técnicas inovadoras, mas o próprio conceito da cirurgia plástica, onde ética e estética caminham lado a lado, sob o fundo antropológico de uma relativa métrica da beleza. Pitanguy visitou igualmente a filosofia antiga, o capítulo metafísico de pulchro, nos elementos constitutivos do belo, como a integridade, a proporção e a claridade. Partiu daqui para desmontar a trama das formas a priori, inclinado à defesa da razão subjetiva, a estética do corpo singular e não a de um feixe de abstração, assumido como têssera platônica.
Das múltiplas qualidades de Ivo Pitanguy, agrada-me lembrar da atenção com o social, marcante em sua biografia, desde a assistência aos queimados no incêndio do circo em Niterói, em 1961, e que continuou, em muitas frentes, até 2015. A solicitude diante dos mais vulneráveis contrasta fragorosamente com alguns de seus colegas, desobrigados, como se sentem, de uma agenda que não da própria clínica, porque talvez inscritos numa ética maleável senão ausente. Eis uma qualidade rara que testemunha a dupla trajetória do médico e humanista, como os que fizeram história na Academia Brasileira de Letras, para além dos preceitos de Hipócrates ou mesmo até dos Analectos de Confúcio.
Pitanguy apreciava a literatura e as artes plásticas a tal ponto, que se tivesse nascido no Cinquecento, havia de integrar com efeito a Academia Platônica de Florença, amigo de Ficino e Botticelli, com os quais discutiria sobre as páginas do Banquete ou de O livro do amor. Quantas vezes não debatemos o conceito da escultura em Michelangelo e Bernini, da curva e da figura em movimento, contra a estática da linha reta. Quem não o ouviu recitar, nesta Casa, com fervor e adesão, os poemas de Rilke, Villon e Baudelaire?
Ao final das sessões tratávamos dos poetas ingleses e alemães. Bastava, no entanto, que chegasse Rouanet e de imediato formávamos um trio de cordas tudescas, para cantar em uníssono o poema de Wanderes Nachtlied de Goethe.
Nosso amigo Pitanguy não deixa apenas saudades, mas sobretudo um legado vigoroso, capaz de sinalizar novas direções nas faculdades de medicina e demarcar a presença de uma nova prática holística, profunda e solidária.