Comunità Italiana

Milagre de um artista chamado Christo

Instalação do artista búlgaro Christo Vladmirov Javacheff atraiu milhares de turistas com uma passarela sobre o Lago de Iseo, na Lombardia, formada por cubos flutuantes

A instalação The Floating Piers criou a ligação entre a terra firme, em Sulzano, e duas ilhas no Lago de Iseo, Monte Isola e San Paolo, no norte da Itália. Afastadas por fenômenos geológicos ocorridos ao longo de milhões de anos, se juntaram de novo graças a um outro tipo de fenômeno: o artístico, com o apoio da tecnologia. Foi preciso que um profeta e visionário, de nome predestinado, Christo, búlgaro de nascimento e americano por adoção, realizasse dois milagres: o primeiro foi conseguir, em tempo recorde, a permissão das autoridades italianas para a realização do projeto, o segundo foi criar uma obra de arte efêmera, composta por cubos flutuantes e cobertos por um tecido de nylon, na qual os visitantes possam caminhar sobre as águas, mais ou menos como o outro Cristo fez, segundo os relatos dos livros do evangelho, muitos séculos atrás.
Do alto, quase uma visão celestial, as passarelas flutuantes parecem riscos de giz amarelo sobre o espelho d’água. O contexto paisagístico já era cinematográfico por si só. A intervenção artística ressaltou o casario, os povoados e os santuários, e criou um impacto visual ainda mais forte, como as pinceladas, finais e geniais, de um artista num quadro inacabado. O efeito especial e a ilusão de ótica provocados pela imagem à distância rendem aquele espaço único e o transforma em maquete. Lá embaixo, a multidão de pessoas que caminhava sobre a obra de arte lembrava uma animação digital.
À medida que se perde altura e se aproxima da pracinha central de Sulzano, tudo vai recuperando as reais dimensões, com a exceção da obra. Ao contrário, a sua grandeza salta aos olhos do observador e do visitante que já começa a caminhar sobre a passarela, não ainda flutuante, mas apoiada sobre o cimento que pavimenta as vielas medievais do antigo burgo de pescadores até o cais. Dali continua o seu percurso móvel, desta vez ao sabor dos ventos, das correntes e das ondas, num total de cem mil metros quadrados de tecidos fabricados na Alemanha, de noite, iluminados por lampadazinhas e holofotes produzidos nos Estados Unidos. Sim, pois a entrada, além de ser gratuita, podia ser feita 24 horas por dia, em função da meteorologia e fluxo de pessoas.
A estação de trem desta cidadezinha é o ponto de partida para um passeio mágico. Os trens extras foram tomados de assalto por um público ávido por viver a experiência divina de atravessar um lago, a pé, sem banhar os calcanhares. A passarela chegava ao lago depois de 35 centímetros acima do nível da água, com suaves declives laterais afundando na água.
— O visitante vai ter a sensação de caminhar sobre as águas ou nas costas de uma baleia — brincou o artista Christo, antes da inauguração.
Ou sobre um colchão de água, porém, mais rígido e menos maleável. Mas a superfície flutuante se move, naturalmente, e não tem balaustradas nem corrimãos com segurança, que é feita por uma “frota naval” de 25 botes com mergulhadores a bordo.
A passarela de três quilômetros de extensão sobre a água e dois e meio pelas ruas dos vilarejos começava na cidadezinha de Sulzano, atravessava o lago e desembocava em Monteisola ou Monte Isola, a ilha maior que atende pelos dois nomes. Ali, em terra firme novamente, o trapiche continuava pelo perímetro da costa até mergulhar mais uma vez, em direção à ilhota de San Paolo, para contorná-la, criando uma espécie de praia artificial diante de uma das jóias arquitetônicas do lago de Iseo, o mosteiro com início de construção em 1091 a.C., atualmente residência de férias da família Beretta, histórica dinastia de fabricantes de armas desde o século XIV. Nas figuras do casal Franco Beretta e Umberta Gnutti Beretta, concentrou-se todo o trabalho de tecer a trama da obra com os prefeitos das cidades envolvidas com a instalação The Floating Piers.

Local chegou a receber 70 mil pessoas em um único dia
A expectativa de atrair um milhão de visitantes a uma realidade pouco conhecida seduziu as administrações públicas de vilarejos com pouco menos de dois mil habitantes, discretos e hospitaleiros o quanto basta.
— Este é um evento fantástico que coloca o nosso lago no mapa do turismo internacional. Estamos muito felizes. As únicas preocupações que temos são o tempo, a meteorologia e a invasão dos turistas — disse o prefeito de Monte Isola, Fiorello Turla, à Comunità.
O fluxo contínuo de pessoas tocou picos de 70 mil pessoas em apenas um dia. O bom tempo colaborou para o sucesso do evento, mas foi a magia da instalação que atraiu pessoas que dificilmente sairiam de casa para ir a um museu. O milagre da arte contemporânea aconteceu no Lago de Iseo, o menor dos Alpes italianos, uma espécie de patinho feio ao lado de imponentes cisnes brancos, como os de Como, Maggiore e Garda. O elemento água, em todas as suas formas, também contribui para a peregrinação dos discípulos deste Christo moderno, de 81 anos mas com uma vitalidade de criança. O corpo franzino e a cabeleira branca contrastam com uma energia sem par.
— A minha obra é física, concreta… Tudo aqui é verdadeiro, temos as ondas, as correntes, o vento, o sol, a chuva, nada é virtual. Esta instalação oferece muitas chaves de leitura e não sou eu quem vai decifrá-la. Interessa-me apenas proporcionar ao visitante uma experiência única. Quero que seja eterna na memória de quem esteve aqui — afirmou o artista à Comunità.
Memória, sim, pois esta obra-prima não era eterna, projetada para durar apenas 16 dias, com desmantelamento começando no dia 4 de julho. Um trabalho de planejamento que começou em 2014 e acelerou nos primeiros meses deste ano para pousar no fundo do lago, com profundidade de nove a 100 metros, as sapatas para o sistema de ancoragem dos 220 mil cubos de polietileno expanso, material usado na construção da passarela. Tudo será reciclado após a exibição. Cerca de 500 operários e voluntários, além de técnicos, engenheiros e mergulhadores, trabalharam na realização do The Floating Piers, uma ideia que nasceu em 1970 para ser feita no rio da Prata, em Buenos Aires, e que depois seria quase concretizada na baía de Tóquio, 26 anos depois.
— O maior desafio de todos os nossos projetos é conseguir a permissão das autoridades para realizá-los — afirma Christo, que fala sempre no plural porque leva em consideração a presença espiritual da companheira de uma vida, Jeanne-Claude (1935-2009), parceira em todos os seus trabalhos de “artequetura”, como ele gosta de se definir.
O homem que empacotou o Parlamento alemão em Berlim cobriu com lençóis gigantescos um trecho da costa australiana nos arredores de Sidney, envolveu as ilhas de Kybiscane com tecidos furta-cor, na Flórida, simulou uma fenda têxtil nos desfiladeiros da Califórnia sobre o oceano Pacífico e criou um sistema de autofinanciamento inédito no mundo. Antes de cada projeto, ele pinta os quadros de suas visões oníricas como desenhos preparatórios para realização do impossível. Estas obras são oferecidas aos investidores que emprestam o dinheiro para a concretização das imagens pictóricas. Hoje, este método é um dos poucos casos de estudo adotados pela universidade americana de Harvard em seus cursos de economia.
A afirmação de seu talento e o reconhecimento internacional chegariam apenas aos 60 anos de idade. E ele enche a boca sobre os custos do The Floating Piers, avaliados em 15 milhões de euros:
— É tudo financiado por mim. Não farei nenhuma outra obra depois dela realizada, realmente. Os quadros são oferecidos aos investidores, pois eu tenho que pagar aos operários que trabalham na realização da instalação — afirma, pragmático e seguro da rota que traçou quando ainda era um desconhecido artista e imigrante.

Museu de Brescia recebe mostra com projetos do artista
Hoje, uma obra de Christo está cotada em um milhão de euros. Como suíte da instalação, o Museo Santa Giulia, em Brescia, cidade vizinha a Sulzano, apresenta a exposição “Christo-Jeanne Claude, Waters Projects”, composta de 150 quadros, fotografias, desenhos, colagens, maquetes e vídeos que contam esta história entre 1968 e 2016, e exibem projetos que tiveram mais de 40 anos de gestação, como o do Lago de Iseo. A mostra vai até 18 de setembro.