As ovelhas pastam numa ampla colina, livres. Os porcos circulam pelos montes, soltos. Os filhotes dos suínos ficam protegidos dentro de uma estrutura à parte até poderem se defender dos animais selvagens como os javalis, visitantes indesejáveis. Os búfalos vivem no estábulo moderno, amplo, arejado e com largas janelas para a entrada da luz natural. Bois e vacas também recebem um tratamento “vip” ao longo da vida, assim como os cavalos. Todos vivem dentro de uma zona em meio aos vinhedos, plantações e bosques preservados.
— Aqui, nenhum animal pode reclamar de nada, até o momento de ser transformado — alerta, com uma ponta de ironia e melancolia, a visionária “amazona” e condessa Ninni di Collalto, descendente da nobreza local que divide esta fazenda-modelo com a irmã Caterina.
A propriedade é uma das poucas na Europa a realizar os produtos finais, abraçando toda a fileira em circuito fechado — não a quilômetro zero (como é conhecido o programa de controle de alimentos orgânicos no país), mas a metro zero.
— Podemos rastrear toda a nossa produção, do queijo à carne, chegar ao animal que deu origem e até mesmo conhecer a sua dieta alimentar — conta Ninni com orgulho.
A fazenda fica encravada na região do Vêneto, em meio aos montes da província de Treviso, no coração de Susagana, atravessada pelo histórico rio Piave, frente de batalha da Primeira Guerra e zona ocupada pelos austríacos.
— Imagine que os italianos do outro lado do rio tiveram de bombardear suas próprias casas para expulsar os inimigos. O castelo de San Salvatore, de 1323, foi em parte reconstruído, mas o de Collalto, erguido em 1138, continua em ruínas. Foi um período de grande sofrimento para todos aqui — diz Ninni.
Ela lembra ainda que a grande fome que assolou a região logo após a guerra provocou uma forte emigração vêneta rumo a América do Norte, Brasil e Argentina. A história e contemporaneidade andam de mãos dadas por aqui.
Transformar foi o verbo usado por ela para explicar aos estudantes das escolas públicas — que visitam o estabelecimento com frequência para atividades didáticas — a obra-prima para a criação dos alimentos em contínua operação, em meio a máquinas e homens.
— Assim, a compreensão da vida e da morte fica mais fácil para as crianças — justifica Ninni, mãe de três adolescentes.
E como não dar razão a ela, comandante suprema de uma força tarefa de 50 agrônomos, lavradores, químicos, biólogos e zootécnicos (entre eles, indianos especialistas em mungir vacas e búfalas)?
— Em algumas antigas casas habitavam até mesmo 40 pessoas. Uma delas nós transformamos em museu histórico da família, onde podemos ver os locais preservados nos quais muitos artesãos dormiam e trabalhavam na fabricação de sapatos, na produção de ferramentas para arar a terra. Quero que as gerações de hoje saibam que tudo isto é fruto de muito trabalho que vem sendo realizado ao longo dos séculos — conta, dentro da casa-museu Roccagelsa.
A fazenda opera em completa autonomia, naturalmente sujeita ao cipoal de normas e leis italianas e europeias que regulamentam, protegem e também entravam os diferentes setores, como a produção de energia elétrica. Ao longo do tempo, criou-se um moderno feudo, onde todo o processo de transformação dos alimentos é perfeitamente rastreado e controlado do começo ao fim.
Em Borgoluce, nome deste pequeno “território” familiar italiano, tudo se faz e nada se perde. A começar pelos restos das colheitas dos grãos, que viram nutrientes para os animais, além de combustível para a usina de biomassa. O inteiro ciclo agroalimentar da fazenda é completamente fechado, sendo aberto apenas para as intempéries da natureza. Chuva, sol, neve, vento são os principais solistas que se alternam durante o ano e exaltam as notas de uma variada partitura de atividades agrícolas e zootécnicas, paralelas e transversais, em grande sinergia, regida com maestria e em sintonia com o tempo do homem, dos animais, em respeito pleno da natureza. O resultado é uma sinfonia escrita a muitas mãos há cinco gerações, composta nota após nota, com suor em bicas, trabalho duro da terra, reconhecimento e na preservação das tradições locais. Dos alimentos aos animais, à luz de casa, passando pela farinha de milho branco para a polenta e pelos salames e carnes — sem falar no vinho Prosecco Superiore D.O.C.G. Tudo feito nos quintais, distribuídos pelos 1.200 hectares de uma imensa propriedade salpicada de antigos casarios transformados em residências para turistas que buscam um contato imediato e de último grau com a natureza.
Casarões reformados hospedam o visitante com grossas paredes que garantem o silêncio
O rigoroso controle da inteira cadeia alimentar produzida e proposta neste “feudo” do século XXI, onde os produtos podem ser comprados ali mesmo, autorizou a empresária com título de condessa, do tempo em que a Itália era um reino, a enveredar pelos campos do turismo. Depois de reformar alguns casarões e adaptá-los com o conforto moderno sem comprometer a riqueza arquitetônica, Borgoluce decidiu abrir as portas para os viajantes de passagem ou para uma estadia maior. Duas “casas-grandes”, sem senzala, foram eleitas e preparadas para receber os visitantes. As casas Lentiner e Sfondo se destacam na paisagem, no alto de duas vizinhas colinas. Elas possuem quatro apartamentos, com 26 leitos, mais um com nove quartos-suítes, com 18 camas e serviço de café da manhã, estilo bed&breakfast. O silêncio chega a ser surreal. As traves de madeira protegem o sono e o pavimento, com as ripas antigas. Elas rangem levemente quando tocado por passos lentos, leves e noturnos. As grossas paredes não deixam o frio entrar nem o calor escapar. O ar condicionado não faz falta.
Respira-se um clima de outras épocas e, ao abrir a janela, depara-se com a vastidão de um horizonte acostumado a ser visto e admirado apenas nas telas dos cinemas ou em ambientes selvagens. A contemplação é um convite à calma, ao sossego, à inspiração mais do que a transpiração. Uma simples caminhada ou uma tranquila pedalada pelos 50 quilômetros de estradinhas, com poucos aclives e declives de baixa inclinação, e trilhas de terra batida, revigoram qualquer ser humano estressado pelo ritmo alucinante dos centros urbanos. O isolamento natural, acústico e paisagístico do lugar esconde a proximidade com cidades importantes e turísticas num raio de cerca de uma hora de carro, além de conexões com trens. Ali, nas paragens e redondezas, estão as montanhas das Dolomitas vistas da mundana Cortina d’Ampezzo, a lagoa de Veneza, os palazzi de Vicenza realizados pelo arquiteto Andrea Palladio e a capela Scrovegni pintada por Giotto, em Padova, também terra natal de santo Antônio.
As raízes de milhares de italianos oriundi nasceram aqui, assim como as dos vinhedos locais — de prosecco, principalmente — transplantadas para o sul do Brasil e hoje alvos de batalhas diplomáticas e judiciais, entre os dois países, pelo uso da denominação. Mas esta é uma discussão para se ter depois de quatro ou cinco copos de um bom Valdobbiadene Prosecco Superiore D.O.C.G Extra Dry. Tim tim ou cin cin: depende da nacionalidade do leitor. Depois da quarta taça, todas as fronteiras e barreiras, comerciais e culturais, devem se render ao sabor e à fragrância incomparáveis àquelas de seus semelhantes. Cin cin, ops, tim tim.