Em 1986, quando o piemontês Carlo Petrini fundou o Slow Food, propondo um modelo alimentar que respeitasse o meio ambiente, o movimento representava uma gota no oceano. Em três décadas, o lento e simbólico caracol caminhou pelo mundo e atualmente conta com mais de 100 mil membros em 150 países. A filosofia que defende que o alimento tem que ser bom, limpo e justo conquistou a consciência de milhares de pessoas que se empenham na defesa da própria saúde e da biodiversidade. Hoje, Carlo Petrini é considerado pelo jornal britânico The Guardian “um dos 50 homens que podem salvar o planeta”. O Slow Food comprova que o oceano é feito de gotas.
Nesta edição da bienal Terra Madre Salone del Gusto, realizada de 22 a 26 de setembro, em Turim, o Slow Food festejou os 30 anos por toda a cidade. O evento deixou o tradicional do Lingotto — enorme espaço coberto no qual funcionou uma fábrica da Fiat — para se espalhar por ruas, feiras, palácios e castelos turinesi.
Outra novidade são as 57 novas “fortalezas” de 18 países. Trata-se de um ambicioso projeto da Fundação Slow Food para a biodiversidade, cujo objetivo é defender as pequenas produções tradicionais e promover produtos sob risco de extinção. “Já ultrapassamos a marca de 500 fortalezas no mundo inteiro”, festejam os organizadores.
O tema de Terra Madre Salone del Gusto — querer bem à terra — fez com que as 300 fortalezas presentes no evento se tornassem porta-bandeiras de uma rede que, nestes últimos anos, deu proteção a 500 especialidades locais, dentre as quais encontram-se queijos feitos com leite cru, raças e derivados animais, variedades vegetais, diversos tipos de mel, técnicas tradicionais e recursos ictíicos.
Produtos brasileiros únicos estão ameaçados de extinção
As novas fortalezas vindas do Brasil são o mel de abelhas mandaçaia da caatinga, produzido por abelhas sem ferrão e caracterizado por seu aroma floral muito persistente, e o maracujá da caatinga, uma fruta silvestre que nasce espontaneamente no Nordeste semiárido. Este último é uma planta de natureza perene e resistente à seca, sobrevivendo em condições de absoluta estiagem. Mesmo quando maduro, sua casca é verde e sua polpa branca, extremamente saborosa e perfumada, com um sabor longo, mais doce, mais denso e mais ácido que a do maracujá amarelo. Tanto o gosto quanto o perfume lembram o mel. Esta fruta não é cultivada e, assim como muitas espécies silvestres do nordeste semiárido, está ameaçada de extinção.
Thiago da Rocha Santos, de 20 anos, de Casa Nova na Bahia, veio representar os cultivadores do maracujá da caatinga no evento Terra Madre, que reúne centenas de pequenos produtores do mundo inteiro. Foi a primeira vez que ele participou deste grande encontro.
— A cada dia eu me surpreendo com uma novidade. Para quem é produtor ou agricultor familiar é uma experiência fantástica. Com tantas variedades de frutas e animais, a cabeça da gente abre. Às vezes a gente vê só a nossa realidade, mas quando se encontram tantos países, muda a concepção. Isso nos ajuda a melhorar. Aprendi muitas coisas e principalmente que temos que valorizar o que está ameaçado de extinção — disse Thiago Rocha à Comunità.
Thiago ressaltou que o grande aprendizado é respeitar o ambiente e cultivar em harmonia com a terra. Ele explicou que esse tipo de maracujá não precisa ser irrigado, portanto não altera as reservas hídricas ambientais de uma região que sofre de secas contínuas.
— Embora dê fruto o ano todo, nossa colheita não vem em grandes quantidades. Até agora, contávamos com o incentivo do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que comprava nossos produtos para usá-los na alimentação de escolas e hospitais públicos. O novo governo Temer ameaça cortar este programa. Se isso acontecer, não sei como vamos sobreviver — disse o pequeno produtor.
O catálogo Arca do Gosto contém mais de 50 itens brasileiros, como a castanha do baru
As fortalezas são projetos concretos dedicados a auxiliar grupos de produtores artesanais e preservar seus produtos tradicionais de qualidade. Para a proteção da biodiversidade, o Slow Food criou também a Arca do Gosto — um catálogo mundial que identifica, localiza, descreve e divulga sabores quase esquecidos de produtos ameaçados de extinção, mas ainda vivos, com potenciais produtivos e comerciais reais.
Na Arca do Gosto do Brasil, há mais de 50 produtos, sendo muitos desconhecidos pela maioria da população brasileira. Exemplos são a bocaiúva, fruta do Mato Grosso do Sul; a castanha do baru, típica do cerrado; o jacatupé, conhecido também como feijão-macuco, jicama ou feijão de batata, cujas raízes tuberosas de alto valor proteico são consumidas pelas populações indígenas e algumas comunidades caboclas ribeirinhas da Amazônia; e o licuri, palmeira típica do semiárido nordestino, cuja amêndoa (coco) produz diversos itens alimentícios, como licuri torrado e caramelado, granola, cocada, paçoca, biscoitos, óleo, leite de coco e muitos outros produtos.
Slow Meat para diminuir o consumo de carne
Na Terra Madre Salone del Gusto, a produção e o consumo de carne tornaram-se temas de dimensão central nos debates, nas reuniões e entre o público em geral. Ao longo dos últimos 70 anos, o consumo mundial de carne aumentou seis vezes, passando de 45 milhões de toneladas por ano em 1950 para 300 milhões de toneladas. Em 2050, a necessidade estimada de carne será de 500 milhões de toneladas, um aumento de dez vezes em comparação a 1950, ou seja, o dobro do consumo atual.
De acordo com Serena Milano, secretária-geral da Fundação Slow Food para a Biodiversidade, “continuar a comer carne com os níveis de consumo a que estamos acostumados no Ocidente é insustentável”.
— Criadouros sempre maiores e mais cheios, condições de vida não naturais, sofrimento e estresse, alimentação de má qualidade, a monocultura, desmatamento e enormes quantidades de água: é o preço da industrialização da produção animal. Tudo isso tem consequências graves para o ambiente, a saúde humana, o bem-estar animal e a equidade social. Ao escolher melhor, você pode mudar as coisas — ressaltou.
Enfrentando os gigantes do agronegócio
A união faz a força. Uma multidão de sete mil agricultores, artesãos de alimentos, pescadores, ativistas, líderes indígenas do Slow Food e cidadãos comuns de 143 países marchou no dia 23 de setembro nas ruas do centro de Turim.
— O poder das multinacionais do agronegócio cresce cada vez mais e a especulação financeira sobre os nossos alimentos afeta a vida e a sobrevivência de milhões de agricultores no mundo. Por outro lado, está emergindo com força uma multidão que quer e pode mudar a base das regras impostas por uma economia que domina a vida dos mais fracos — afirmou Carlo Petrini, presidente do Slow Food, durante a conferência no Teatro Carignano.
O sindicalista francês José Bové, militante antiglobalização e porta-voz da Via Campesina, também falou na conferência. Ele luta contra as plantações de organismos geneticamente modificados. Bové lançou um alerta: os gigantes criam o mau e vendem os remédios prometendo a cura.
— A recente fusão entre a Bayer e a Monsanto é um exemplo muito sério, porque estamos diante da criação de um gigante empresarial que controla ao mesmo tempo sementes, fertilizantes, herbicidas, pesticidas, além de medicamentos para curar as suas possíveis consequências para a saúde humana — alertou José Bové.
O mundo da agricultura é feito por grandes corporações, mas também por mais de 500 milhões de agricultores familiares que lutam diariamente para defender a biodiversidade, promover sementes nativas e agir localmente para desenvolver economias saudáveis e limpas.
— Essa multidão promove concretamente um modelo alternativo, traça o possível futuro no qual a soberania alimentar é realizada e difundida, onde a comida não é escrava de um mercado sem rosto e sem freios. Eles são gigantes, sem dúvida, mas somos a multidão! — concluiu Petrini, criador do Slow Food, entidade que comprova que o oceano é feito de gotas.