Mostra em São Paulo, Rio e Brasília homenageou a genialidade de Pasolini, mostrando ao público as diversas facetas de sua obra
O cinema italiano deu ao mundo grandes diretores, mas poucos causaram tanto impacto em sua época, e continuam causando, como Pasolini. Para celebrar o gênio, Centro Cultural Banco do Brasil realizou em três capitais brasileiras uma grande mostra com os filmes do mestre. Sob curadoria do pesquisador e professor de cinema da PUC-RJ Flávio Kactuz, a mostra Pasolini, ou quando o cinema se faz poesia e política de seu tempo apresentou uma retrospectiva completa em película dos filmes realizados pelo diretor entre 1961 e 1975. Depois do Rio, a mostra seguiu para São Paulo (de 22 de outubro a 16 de novembro) e Brasília (de 5 a 24 de novembro).
No Rio, além dos filmes, o público assistiu a documentários em DVD sobre o cineasta, como Pasolini Prossimo Nostro (2007), de Giuseppe Bertolucci; A Futura Memória (1986), de Ivo Barnabò; Via Pasolini (2005), de Igor Skofic; e La Voce di Pasolini (2005), de Matteo Cerami. Um dos pontos altos foi o bate-papo por videoconferência com Ninetto Davoli, um dos grandes colaboradores do artista italiano. Ele respondeu às perguntas dos fãs após a exibição de Uccellacci e uccellini e contou ao público sobre sua participação no filme:
— Espero que o filme tenha agradado, pois é ainda muito atual. É um filme belo, como sempre repito, que está no meu coração, pois foi o primeiro que fiz com o grande Pasolini e o maravilhoso Totò. Para mim, foi como uma descoberta. Eu não fazia cinema, fazia outro trabalho. Quando Pasolini me chamou para fazer esse trabalho, honestamente fiquei muito envergonhado, pois iria trabalhar com um ator como Totò, e eu era muito jovem e ele um ator já consagrado, era uma pessoa que eu ia ver no cinema. Eu estava diante de um monstro sagrado do cinema — relembrou Ninetto, que ainda revelou ao público o início de sua relação com o diretor, após um encontro casual, enquanto Pasolini filmava em Roma. Ao final, acabou participando de 11 filmes do diretor após a estreia em um pequeno papel em Il vangelo secondo Matteo.
Pasolini preferia atores desprovidos de técnica para mostrar a vida como ela é
A utilização de atores não profissionais era uma das marcas registradas do gênio. Em Acccattone, ele começou usando atores e não atores, e pedia para se comportarem do mesmo modo com que se comportam na vida. Seu cinema representava um mundo diferente daquele de Fellini, que usava grandes atores. Pasolini usava os jovens como eles eram na vida, pois lhe agradavam a simplicidade e as expressões das pessoas normais. Ninetto explicou o motivo: para o cineasta, um ator profissional usava muitas técnicas, o que não lhe agradava muito, daí sua preferência por amadores ou atores em início de carreira.
Paralela à mostra, a exposição O olhar de Pasolini sobre o terceiro mundo, cuja origem é o Poema do Terceiro Mundo, escrito por Pasolini, reúne parte de seu acervo fotográfico particular, inédito no Brasil, revelando o olhar apaixonado do diretor sobre o Terceiro Mundo. Seu acervo pessoal hoje está sob a guarda da herdeira, Graziella Chiarcossi. As fotos mostram um olhar diferenciado sobre países em desenvolvimento decorrente de suas viagens pela África e a Ásia.
— Em 1969, ele faz um texto-poema chamado Notas para um poema sobre o Terceiro Mundo, em que descreve a vontade de filmar naquelas regiões. Era um projeto para filmar no Brasil, na Índia, na África e nos guetos dos Estados Unidos. Foi então que vi que havia um recorte que nos interessava — conta Kactuz.
Expulsão do partido comunista e apoio de intelectuais
Nascido em Bolonha em 1922 — ano em que fascismo que chegou ao poder — Pasolini passou seus primeiros anos entre várias pequenas cidades do norte da Itália com a família, sempre acompanhando o pai Carlo Alberto Pasolini, um oficial da infantaria com tendências fascistas. Ele sempre foi mais apegado à sua mãe Susanna Colussi, uma professora que sempre teve amor pela poesia, passando essa paixão para o filho. Em meados dos anos 1930, a família voltou para Bolonha, onde Pasolini terminou o colegial e ingressou na universidade. Durante este tempo, passou longos períodos na região natal materna, ao norte de Casarsa Della Delizia, o que fez com que se encantasse pela cultura camponesa. Ali, começou a escrever poesia em dialeto friulano. Na Universidade de Bolonha, se formou em literatura, mas também estudou história da arte com o renomado Roberto Longhi, o que acabou se tornando uma experiência que viria a influenciar profundamente o estilo visual de seus primeiros filmes.
Ao fim da Segunda Guerra, que custou a vida do irmão mais novo Guido Alberto, Pasolini e sua mãe se mudaram para Casarsa. Tornou-se ativo nos círculos culturais literários e foi nomeado secretário da filial local do PCI (Partido Comunista Italiano). Em 1949, foi acusado de atividade homossexual com alunos e suspenso de seu trabalho como professor, além de ter lhe custado a expulsão do partido. Profundamente desiludido, mudou-se para Roma com a mãe. Estabeleceram-se em uma das pobres vilas às margens da cidade. Enquanto viviam de biscates, ele ficou fascinado com a vida sub-proletária ao seu redor e começou a escrever sobre o assunto.
O submundo romano na tela entre os primeiros escândalos
Seu primeiro romance Ragazzi di vita (1955), abordava o mundo dos subúrbios e a prostituição homossexual masculina. A obra rendeu-lhe a acusação de infrações à decência pública e o apoio de intelectuais e escritores. Seria apenas a primeira das muitas vezes em que Pasolini e sua obra escandalosa seria submetida à censura oficial. Dali até o seu brutal assassinato, em 1975, desempenhou o papel de provocador intelectual mais famoso da Itália, com seus livros, filmes e ideias, levando-o muitas vezes aos tribunais. A descrição do submundo romano rendeu-lhe ofertas de roteiro para diretores renomados como Bolognini e Fellini. A mudança para o universo do cinema seria apenas uma questão de tempo.
Reconhecido como um poeta, romancista, crítico e roteirista antes de dirigir seu primeiro filme, Accattone (1961), mesmo com a fama e a notoriedade conferidas pelo cinema, continuou trabalhado como escritor e ativista político. Durante os últimos 15 anos de sua vida, sua obra cinematógrafica chegou a ofuscar outras das suas diversas facetas e realizações. Esquerdista ferrenho, atraiu controvérsia de todos os lados da esfera política com as cenas de sexo explícito que provocavam a ira dos censores italianos. Com a mania de crítica política e reinvenção estilística, Pasolini era de certa forma o equivalente italiano do francês Godard. Apesar da alegria óbvia em chocar a burguesia, era um pensador, até mesmo filosófico, e pode ser considerado o cineasta que estabeleceu uma ponte entre o grupo pós-neo-realista liderado por Fellini e Antonioni e a geração mais jovem de Bernardo Bertolucci e Marco Bellocchio. Priorizou um modo de impureza estilística radical, usando Bach e Vivaldi como a trilha sonora para mostrar suas visões da vida nas favelas romanas.
Pasolini mostrou seu estilo único de abordagem narrativa em suas três primeiras obras: Accattone (1961), Mamma Roma (1962) e Il Vangelo secondo Matteo (1964). Cada um dos filmes ofereceu uma releitura do legado do pós-guerra, o neorrealismo italiano. Em meados dos anos 1960, fez uma mudança profunda, tentando criar a sua própria versão de um cinema popular. Nessa fase, lançou o astro cômico Totò em filmes como Uccellacci e uccellini (1966), onde usava o humor e a alegoria para criticar as mudanças trazidas pelo crescimento econômico e industrial na Itália. A resposta morna para essas comédias incomuns fizeram com que se voltasse para um “cinema impopular”, onde a fusão do mito e da crítica política, que resultaram em Edipo Re (1967), Medea (1969) e Porcile (1969). Mudou de rumo novamente com sua La Trilogia della Vita, que consiste em uma série de adaptações literárias — Il Decameron (1971), I racconti di Canterbury (1972) e Il fiore delle Mille e una notte (1974) —até finalmente rejeitar esses filmes com Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975), finalizado poucos dias antes de sua morte.