Itália ganha sua primeira artoteca, local que empresta gratuitamente aos seus frequentadores obras de arte como se fossem livros
Cavriago é uma daquelas cidadezinhas tranquilas e quase invisíveis, do centro da Itália. Na hora do almoço, as ruas ficam tão vazias que ela mais parece abandonada. A estação de trem possui apenas um ramal ferroviário que a liga ao município de Reggio Emilia, na homônima província. Mas a independência cultural chega com uma iniciativa revolucionária, ainda que nem seja nova — pois nasceu meio século atrás em países do norte da Europa, como Suécia, Dinamarca e Noruega. A biblioteca da cidade ganhou uma artoteca, ou seja, além de emprestar livros, discos e filmes, possuiu um acervo de quadros para ser levado para casa pelos frequentadores, gratuitamente. E nele constam nomes de pintores renomados como Mimmo Paladino e Emmanuele Luzzati, e até um Chagall já passou pelo acervo.
— Somos a primeira administração pública a criar uma artoteca na Itália. Pegamos a inspiração nas cidades do norte da Europa, onde é comum levar um livro e uma obra de arte como empréstimo. Quisemos tentar aqui. No começo, o frequentador entra com um pouco de receio, vem duas ou mais vezes, pois associa a obra de arte a uma compra, e somente depois pega emprestado. Passado o medo, acaba com a sacralidade, muito presente nas galerias e nas exposições. Aqui se pode tocar a obra — explica a diretora Letizia Valle, responsável pelo Multiplo.
O catálogo atualmente contempla 150 obras — entre quadros de diferentes técnicas, ilustrações e fotografias de artistas locais, nacionais e internacionais, famosos ou anônimos. As peças são escolhidas por um comitê científico composto por um crítico de arte, uma pedagoga e um diretor artístico. Litografias, xilografias, obras gráficas e ilustrações normalmente não superam os mil euros de valor de mercado.
O centro cultural funciona em uma estrutura moderna, envidraçada e construída nos fundos de uma tradicional vila, circundada por um belo jardim, a poucos passos do centro da cidade.
— Historicamente, Cavriago sempre investiu muito em cultura. Por aqui passam em média 500 pessoas, todos os dias. Para uma cidade com nove mil, é um número alto. Tornamo-nos ponto de referência de uma zona. Como no deserto, onde tem um oásis, vão todos. E Cavriago é um oásis cultural — afirma o assessor de Cultura da cidade, Paolo Burani.
O visitante passa por seções de livros, discos e filmes para, finalmente, chegar aos quadros. As obras estão penduradas na parede coberta com uma rede de arame ou em carrinhos de metal, à espera de alguém que as note, e podem ser manuseadas, tocadas e vistas, como se fossem livros em uma prateleira. Os quadros trazem o nome do autor, a técnica usada, as regras para uma boa conservação, o valor das multas em caso de atraso ou dano, além do nome do proprietário, pois pertencem, em muitos casos, a privados que querem divulgar um determinado autor ou compartilhar parte de seu acervo com o público.
Como a ideia de base é a que uma pessoa qualquer possa levar para casa um quadro embaixo do braço, a pé, e 60% dos frequentadores são mulheres, normalmente com filhos a tiracolo, as peças possuem dois padrões básicos de dimensões: 50 x70 cm ou 40 x 50 cm.
As obras têm seguro e podem ser emprestadas por até 45 dias. O problema é quando um frequentador se apaixona por alguma delas. Neste caso, cabe ao direto interessado tentar entrar em contato com o dono e, quem sabe, fazê-lo passar de mãos. Mas é raro.
— Quem leva um quadro acaba entrando numa comunidade interessada em arte contemporânea. Então, se cria uma oportunidade para expor a obra em casa, convidar pessoas e conversar mais sobre o autor. Quando o traz de volta, se sente mais rico — afirma Barbara Mantova, coordenadora cultural do Multiplo.
Normalmente, a cultura artística aumenta e nasce a vontade de conhecer mais sobre um pintor ou gênero de arte. Nesse caso, a obra em si se torna muito maior, adquire um valor inestimável e uma imensa grandeza superior àquela das dimensões de um quadro em si.