No Rio, para discutir mais uma parceria com o designer Oskar Metsavaht, oficial da ONU conta à Comunità como conseguiu unir a indústria do luxo aos artesãos da África e do Haiti
É possível unir dois mundos tão distantes como a alta costura, que movimenta mais de 1,2 trilhões de dólares por ano, e as favelas da África e do Haiti? Com o projeto que idealizou em 2008 e concretizou em 2010, o Ethical Fashion Initiative do International Trade Centre (ITC) das Nações Unidas, Simone Cipriani demonstrou que sim. A iniciativa representa uma nova maneira de fazer negócios na indústria da moda que permite as comunidades marginalizadas de favelas e áreas rurais empobrecidas fazerem parte da cadeia internacional de valor da alta costura. O projeto promove benefícios reais como geração de renda, incentiva o surgimento de pequenos empresários e facilita o contato desses novos comerciantes com o grande mercado de moda.
A ideia do projeto surgiu quando Cipriani entrou em contato com um grupo de artesãos da favela de Korogocho, em Nairóbi, capital do Quênia, onde morava.
— Foi lá que, em 2002, encontrei um missionário laico chamado Gino Filippini. Esse italiano passou a maior parte da sua vida na África com uma missão: criar trabalho. Ele tinha criado muitas cooperativas e em Korogocho me ensinou a dialogar e a trabalhar com os microprodutores da favela. Foi assim que começamos, criando uma cooperativa que produzia sapatos — conta, com o seu simpático sotaque toscano, Cipriani, originário de Pistoia.
Depois de ter obtido resultados positivos, a Ethical Fashion Initiative se tornou oficialmente um projeto da Organização das Nações Unidas (ONU).
— Em 2009, criamos a primeira empresa social que coordenava o trabalho de todos esses microprodutores nas favelas de Nairóbi; depois o projeto se expandiu e começamos a trabalhar em Burkina Faso, Mali, Gana, Uganda e também no Haiti — relata.
Cipriani e sua equipe multicultural, na qual trabalham africanos, haitianos, japoneses, franceses, jamaicanos, americanos, russos e suíços (ele é o único italiano), revolucionaram a produção de moda através da inclusão social.
— O nosso problema principal foi tirar a imagem da beneficência e colocar a do trabalho na África. Daqui nasceu o lema Not charity, just work (não beneficência, apenas trabalho). É uma forma nova de cooperação entre os países e entre as realidades produtivas, que representará um modelo para o futuro — explica o diretor do Ethical Fashion Initiative.
Entre as dificuldades enfrentadas, está a falta de infraestrutura que, em parte, continua.
— Cada dia é uma batalha, mas no fim sempre superamos. O importante é ter uma equipe de pessoas altamente motivadas — afirma o oficial da ONU.
Projeto conta no Haiti com parceria do criador da Osklen
Os primeiros passos do projeto foram dados na África e contaram com o engajamento de estilistas de fama internacional. Cipriani relata que em alguns casos não foi difícil conseguir essas parcerias, pois havia estilistas prontos para colaborar.
— Vivienne Westwood estava pronta a fazê-lo. A italiana Ilaria Venturini Fendi estava prontíssima: ela já tinha tentado iniciar alguns projetos na África, nós nos encontramos em Camarões e eu a convidei para conhecer o nosso trabalho em Nairóbi. Assim, começamos a trabalhar juntos. A sua marca se chama Carmina Campus. Depois, vieram as parcerias com vários outros estilistas, mas esses primeiros eram como se estivessem esperando para fazer algo desse gênero com a gente — relata.
Ilaria Venturini Fendi foi uma das primeiras a acreditar no projeto sem hesitar. Há anos, ela promove a Carmina Campus, marca de moda ética e sustentável que envolve especialmente microprodutoras africanas. De acordo com a estilista, produzir luxo nas favelas é útil, ético e “cria um círculo virtuoso que melhora a vida de quem vive em locais desfavorecidos, mas também aumenta o volume de negócios de quem vende esses produtos”.
Venturini Fendi não foi a única que apoiou a iniciativa: outros estilistas acreditaram, como Stella McCartney; a empresa japonesa United Arrows, liderada pelo diretor criativo, Hirofumi Kurino; a marca australiana Sass&Bide; as empresas dos Estados Unidos Macy’s, Chan Luu e muitas outras.
Em 2012, nasceu a parceria com o estilista brasileiro e criador da marca Osklen, Oskar Metsavaht, para o primeiro e até agora único projeto na América Latina, mais precisamente no Haiti, chamado e_ayiti — o nome do país escrito em creole. A iniciativa apoia artesãos locais na criação de uma linha de acessórios confeccionados com fragmentos de ferro forjado, cordas de telefone coloridas e tecidos, tudo reciclado. Dessa forma, os haitianos transformam lixo em pulseiras e colares. Todos os acessórios são gravados com palavras escolhidas pelos próprios artesãos na língua nativa.
— Sempre tentamos trabalhar com designers, estilistas inovadores e visionários como nós, e Oskar (Metsavaht) que é um dos grandes inovadores em nível mundial — avalia Cipriani.
As peças e_ayiti são vendidas nas lojas da Osklen desde fevereiro de 2014, e nos Estados Unidos. O diretor do ITC espera que logo também se encontrem à venda no Japão.
Planos de envolver os artesãos das comunidades cariocas
Em novembro, Cipriani esteve na capital fluminense para discutir mais uma parceria com o Instituto-E, criado e presidido por Metsavaht.
— Há artesãos que fazem um trabalho muito bom nas favelas e então colocamos na cabeça fazer alguns produtos nas favelas do Rio, pois acreditamos na economia de solidariedade que lá encontramos — revela o oficial da ONU, impressionado com o que viu nos complexos da Maré e do Alemão.
Segundo ele, nas comunidades, o trabalho gera uma renda que fica na favela a fim de desenvolver muitas outras pequenas atividades.
— A economia de solidariedade é um conceito inovador que pode ser levado ao redor do mundo. Nas favelas, há pessoas que podem ensinar e precisam de oportunidades. Nós estamos tentando com pessoas das comunidades, pois as coisas não vêm do alto, mas são feitas a partir do fundo, trabalhando juntos — explica Cipriani que pretende ampliar a iniciativa entre os artesãos cariocas.
O italiano é contra a abordagem clássica do assistencialismo. Ele acredita que o caminho é “plantar a semente e ajudar a planta a crescer e, quando florescer, deixá-la nas mãos das pessoas e continuar sempre disponível para ajudar”. Os primeiros grupos de produtores africanos já começaram a se tornar autônomos para trabalhar através da empresa social que foi criada. Segundo Cipriani, a coisa mais importante para desenvolver esses projetos é a continuidade, a qual permite melhorar a vida das pessoas envolvidas.
Muitas vezes se ouve falar de projetos das Nações Unidas e de outras organizações, mas exatamente de que maneira transformam a vida das pessoas? Cipriani explica que há um departamento que observa e mede as mudanças que os projetos produzem no território, através de um sistema de avaliação de impacto que envolve assistentes sociais, antropólogos, sociólogos, e outras especialistas.
Os dados recolhidos mostram que o projeto liderado por Cipriani aumenta a escolaridade, pois permite aos filhos das mulheres que trabalham irem à escola; diminui as doenças; permite às artesãs que se emancipem com trabalho e dinheiro, mudando as relações sociais. Os filhos homens tratam melhor as próprias mães, consideradas antes inferiores aos homens.
— No centro do Quênia, em Laikipia, descobrimos que as meninas paravam de ir à escola quando começavam a menstruar porque não tinham absorventes e, além disso, carregavam um estigma social. Desde que as suas mães trabalham, as filhas voltam à escola, pois podem comprar os absorventes — conta o responsável do ITC, confiante em que o projeto pode realmente mudar a sociedade.