Como transformar o trabalho em algo que não seja doloroso, duro e angustiante? O que fazer para evitar aquela amarga sensação de ter o tempo (e a vida) roubado pelo trabalho? Os latinos usavam a palavra labor para indicar fadiga, enquanto os portugueses, espanhóis e franceses associam a palavra ao momento do trabalho de parto para trazer à luz, com sofrimento, a alma de um ser humano.
— Já chegou há muito tempo? — me pergunta Lino Desogus, com um inconfundível sotaque sardo. Ele abre a porta do casarão da Rua Senador Pompeu, no vivaz bairro carioca da Gamboa, como se fosse da sua própria casa. Entramos brincando e, logo, percebo uma sensação de leveza convertida na surpresa de estar em um lugar que não esperava encontrar. Estou dentro do ventre de Goma, a brilhante realidade co-working onde o labor se torna um prazer, bandeira de uma mudança que começa a circular pelo Brasil e pelo mundo.
Lino me mostra a sedutora e imensa área de trabalho coletivo onde instalou o próprio escritório, formada por três antigos casarões, onde o espaço e a luz são como um oceano onde o italiano navega numa nova aventura em terra brasiliana. Aqui, o italiano encontrou um porto seguro para a sua própria agência digital, a riobyte.com, mas também para a Bom Delivery, promissora plataforma on-line para pedidos de entrega de comida e alimentos que o italiano e um sócio vão lançar em breve.
Meses atrás, Lino largou a segurança de um bem-sucedido emprego para escolher a independência do próprio negócio. Ele quis abri-lo no Goma — espaço onde outros jovens têm seus próprios ateliês, oficinas e escritórios. São artistas, designers, arquitetos, marceneiros e outros profissionais de diversas áreas ligadas à sustentabilidade ambiental, além de visionários de setores de negócios, contribuindo para formar uma próspera e saudável economia colaborativa. Goma, Catete92, Nuvens, Templo, Coletivo do Porto, Fábrica da Bhering, Incubadora Afro-Brasileira. São alguns dos espaços de co-working que não param de nascer na cidade, locais onde jovens, mas também veteranos do trabalho, se unem para construir algo de novo no individualista mercado capitalista que não consegue sair de uma autodestrutiva conjuntura de crise econômica mundial.
— Procurava um espaço de co-working, e Goma é muito mais que isso. Aqui há muitas empresas, mas todas têm um único denominador, a economia sustentável, o empresariado em rede. Foi o que me seduziu logo. Goma é uma rede de empreendimentos jovens com uma filosofia de economia sustentável, criando a economia do presente e do futuro, aquela que eu gostaria de ver no mundo no qual viverá minha filha — frisa Lino.
De Bolonha ao Rio, uma aventura bem-sucedida de amor e open source
A sociedade precisa de cura, pois as cidades também estão doentes e precisam usar materiais sustentáveis que não agridam o homem e o meio ambiente, argumenta.
— As empresas precisam manter o lucro, claro, mas este não é o único objetivo — acrescenta Lino.
Este “algo a mais” se chama colaboração, união e amizade, tornando o trabalho algo bonito na vida. Lino Desogus tem uma filha, Sara, fruto da união com Rita, brasileira que conheceu quando vivia em Bolonha. Lino nasceu na província de Cagliari, na ilha da Sardenha, onde frequentou a faculdade de Ciências Políticas. Ao mesmo tempo, completou os estudos como programador em informática, começando a trabalhar com edição de áudio e vídeo. Na Sardenha, também foi editor de uma revista de turismo, junto com alguns amigos, mas ele sonhava sempre com outra vida. Sem hesitar, largou aquilo que tinha construído na ilha, para começar tudo de novo em Bolonha.
— Sempre pensei em viver no exterior, talvez por causa de meu pai marinheiro. Ele me contava das suas viagens no mundo. Amei Bolonha, uma cidade cosmopolita, não muito turística, mas feita de jovens vindos para estudar e viver. Foi uma época de muita vida, amizade e amor. Lá encontrei Rita, que estava na cidade para uma pesquisa de mestrado em cinema sobre Pasolini — conta.
Após uma primeira e sedutora viagem para o Rio de Janeiro, Lino e Rita resolveram se mudar para a capital fluminense, onde para o italiano começaria uma nova aventura no mundo. No Rio, apresentou o seu currículo para três empresas de informática. Uma delas o chamou para uma entrevista. Depois de três dias, já estava trabalhando.
— Na Itália, isso aconteceria só em sonho — exclama Lino.
Apesar de superintegrado, ele se sente italiano e não exatamente um imigrante. Se antes tinha uma ideia estereotipada do Brasil, resumido a samba, futebol e caipirinha, tudo mudou. Morador de Santa Teresa, bairro carioca onde vivem muitos estrangeiros e artistas e ainda se respira um ar comunitário, afirma que ama o mundo “das open sources e da colaboração”.
Finanças em dia, 84 associados e foco em inovação social e sustentabilidade
A história de empreendedorismo de Bernardo Ferracioli, economista e um dos fundadores do espaço, começou com uma start up.
— Quisemos sempre manter um contato com o mundo acadêmico. MateriaBrasil, a empresa da qual sou sócio, ficou incubada por um tempo na Escola de Desenho Industrial EBA/UFRJ. Começamos a procurar um imóvel para abrir um escritório e acabamos comprando o casarão ao lado deste aqui. Iniciamos as nossas atividades, sempre mantendo o contato com a universidade. Muita gente vinha, pois viramos uma referência como start up. Até que dois casarões próximos ficaram livres para serem alugados. Resolvemos arriscar e os alugamos, para logo depois fundar o Goma — revela o economista Ferracioli.
O grupo fundador pediu um empréstimo de 200 mil, devolvidos ao banco.
— Goma é uma ONG saudável. Neste momento, tem em caixa 60 mil reais líquidos — diz, otimista, Bernardo.
A associação conta com 84 associados, que se apresentam como uma entidade interdisciplinar de empreendedorismo em rede, com foco em inovação social, economia criativa e design sustentável. O trabalho foi participativo desde a reforma dos imóveis, os quais cobrem uma área de 750 metros quadrados. Os associados foram convidados a pôr a mão na massa e também no reboco, na pintura e no acabamento dos casarões. Goma não lucra com os aluguéis dos espaços e não tem fins lucrativos. Seu modelo de negócios visa à autossuficiência, num modelo de empreendimento social. A diretoria da organização, composta por Ursulla Araújo, da Carioteca, a presidente, e pelos diretores Bernardo Ferracioli, da MateriaBrasil, e Marcos Salles, também da Carioteca, não é remunerada. Há apenas dois funcionários administrativos.
Vários níveis de participação, de residente a entusiasta
Goma oferece vários níveis e preços para se associar. O primeiro é a figura do residente, que paga 645 reais mensais, com plenos direitos de decisão nas reuniões de coordenação, incluídos o direto de veto e a liberdade de usar todos os espaços de trabalho. Os outros níveis de associação se chamam Amigoma, Estagiário, Temporário, Rolezinho e Entusiasta. Pertencem à última categoria aquelas pessoas que querem usar o espaço de vez em quando, pagando 65 reais por dia e — muito importante — escutar o que se diz nas reuniões de trabalho, conhecer projetos e empresas que circulam na associação. Os resultados são evidentes. A cultura colaborativa alcança resultados não só no espírito das pessoas, mas também nas finanças.
— Estou cada vez mais convencido que a cultura que desenvolvemos aqui não é melhor por ser mais orgânica ou amorosa. É mais legal, pois, financeiramente, traz mais resultados. A minha empresa cresceu 25% só neste último ano. Tenho certeza que isso tem a ver com Goma, com as pessoas de quem me aproximei aqui dentro e com a rede que fizemos. Para mim, colaboração é dinheiro, resultado, eficiência, pegar negócios. Fora isso, não me lembro de ter feito tantos amigos desde que entrei na faculdade — afirma Bernardo.
As soluções chegam rapidamente ao mundo da colaboração, graças aos contatos dos associados.
— Este não é um espaço careta, mas já recebi executivos da Embraer, Citroen e Odebrecht — revela o economista, acrescentando que os executivos ficam deslumbrados, até mesmo com uma ponta de inveja, ao conhecerem a realidade de trabalho e a liberdade que se respira ali dentro. Os associados usam a roupa que querem, alguns têm piercing e outros andam com cabelo “doidão”.
Quando a segunda-feira não é um estorvo e o happy hour se faz dentro do escritório
Todos os associados são livres para manter seus próprios ritmos.
— Se alguém quiser viajar seis meses ou trabalhar na praia, pode fazê-lo sem problemas. O que para mim é importante é ter responsabilidade e pontualidade no trabalho — frisa Bernardo.
— Faço um trabalho com uma comunidade indígena Caiapó. Uma coisa no idioma deles diz muito sobre o quanto nossas culturas diferem. Para eles, não existe diferença entre as palavras ‘fazer’ e ‘trabalhar’. Eles acordam de manhã e vão apei, que significa “fazer algo”. Parei de dividir a vida do Bernardo que se fantasia para trabalhar e o Bernardo que sai do trabalho e pode viver a vida dele — conta, explicando que o conceito ocidental de que o fim de semana é recreativo e que na segunda se trabalha é um equívoco, pois leva a uma desconstrução interna da pessoa.
— Esta é a filosofia de vida do futuro próximo, no qual as pessoas entrarão cada vez mais em rede, mas não no sentido de internet, tampouco do Facebook. Não digo que nos cansamos deles, mas precisamos de pessoas em carne e osso, pessoas que respiram. Não necessitamos de avatar — acrescenta Lino.
O convívio é muito importante em Goma. Sexta-feira é o dia em que normalmente se fecham contratos e projetos, quando todos celebram o happy hour na própria sede, enquanto lá fora todo mundo foge dos escritórios. Lino não vê no co-working uma ameaça ao sistema capitalista.
— Não sei quantos se acham comunistas dentro de Goma. Talvez a gente se sinta mais anarquista. Cada um tem sua própria visão política, mas com certeza não reacionária. Aqui se faz evolução, não revolução — afirma o italiano.
A autogestão é um dos objetivos do grupo, “uma realidade na qual ninguém lucra espantosamente”, resume Lino. O horizonte dos trabalhadores de Goma é propor soluções alternativas para abrir brechas no atual sistema socioeconômico, como a entrega a domicílio de vegetais orgânicos por preços mais em conta do que aqueles praticados nas grandes redes de supermercado, em contraste à produção em massa das grandes corporações e das commodities.
Segundo o economista Bernardo, quem procura emprego deve se preparar para ter problemas, mas quem oferece produtos e serviços alternativos fará bons negócios, e a mudança na morfologia das cidades é um fenômeno mundial, e não apenas brasileiro. Portanto, as pessoas devem começar a mudar os próprios comportamentos e a si mesmo.
— Somente assim as coisas mudam, sem esperar que a política o faça — afirma Lino, que sai de casa sem sentir o fardo de ir trabalhar ou o peso da segunda-feira.
Cada vez mais empresas americanas permitem trabalhar fora dos escritórios
A percepção, ou melhor, a não percepção do tempo, é um fator importante para não ficar escravo dele, um conceito cada vez mais colocado em prática por empresas. A possibilidade de se trabalhar em lugares além dos escritórios e de não ter o tempo controlado através do relógio e do calendário cresce nos Estados Unidos. A última a adotar a política das férias ilimitadas foi a Virgin Management, empresa que administra os investimentos e a fundação do empresário Richard Branson, criador do Virgin Group. Trata-se da primeira empresa fora do ramo da tecnologia a implementar a prática. Branson diz que tomou essa decisão inspirado no Netflix. Fazem parte do grupo dessas empresas as startups Hubspot, Evernote e Quirky — todas da área de tecnologia.