Qual é a visão dos italianos sobre a atual política econômica e social no Brasil e na América Latina? Ouvimos três especialistas em política internacional para analisar o momento conturbado vivido pelos países da região
Neste ano eleitoral agitado no Brasil e em outros seis países da América Latina, onde os cidadãos irão às urnas para escolher seu próximo presidente, existe a tendência de mudar radicalmente o mapa político latino-americano para a direita, como na Europa e nos Estados Unidos? Como a detenção do ex-presidente Lula é interpretada na Itália: como uma injustiça ou uma demonstração de força na luta contra a corrupção? Para responder a estas e outras perguntas, Comunità entrevistou três especialistas italianos: Leonardo Morlino, professor de Ciência Política na LUISS em Roma e ex-presidente da International Political Science Association (IPSA); Eleonora Poli, pesquisadora do Istituto Affari Internazionali (IAI) sobre políticas econômicas na Europa e no mundo e Ph.D. em Economia Política Internacional pelo Departamento de Política Internacional da City University London; e Gilberto Bonalumi, conselheiro científico do Instituto para os Estudos de Política Internacional (ISPI) e perito em América Latina. Outros temas abordados foram a escalada da violência, a intervenção militar no Rio de Janeiro, o perigo do retorno de uma ditadura e a desvalorização do real.
O professor Leonardo Morlino cita os desafios do processo de democratização no continente
— Houve uma virada histórica muito importante na América Latina em relação à politica exterior americana que, a partir de certo momento, percebeu que apoiar os regimes autoritários não era mais conveniente porque não dava mais aquela garantia de estabilidade que se pensava. Por consequência os Estados Unidos aceitaram que poderia haver uma democracia nos países latino-americanos.
Morlino falou também de uma guinada na política latino-americana como um curto-circuito:
— Outra virada foi interna, pela qual as pessoas começaram a entender que do ponto de vista político poderia existir uma democracia, as quais foram dadas diversas interpretações e que em alguns casos tentaram garantir uma maior igualdade, mas em detrimento de outros aspectos democráticos, como a garantia de liberdade. Ressalto a concepção fundamental da democracia, que é o controle do poder, portanto o controle da corrupção. Este aspecto caminhou junto com o início da mudança de fase política. Depois do crescimento, vieram as vacas magras. A este ponto criou-se um curto circuito porque em algumas partes dos países latino-americanos os cidadãos criaram expectativas sobre qual seria a interpretação da democracia. No Brasil, a interpretação da democracia começou com Fernando Henrique Cardoso, que era um homem radical de esquerda e se transformou em um liberal democrático, mas que foi a origem da transformação da democracia brasileira. Mas a democracia brasileira prosseguiu com uma tentativa de resposta à profunda desigualdade. A legitimação de Lula representou isso. Já Dilma Rousseff encontrou uma situação pior, seja por problemas de corrupção ainda confusos que devem ser esclarecidos, seja pelo declínio econômico e uma resposta da direita. A situação latino-americana é muito variada, é difícil falar de um continente no seu complexo. Cada país é diferente. Mas hoje se encontra diante desta dificuldade: repensar uma democracia, na qual existem menos bens públicos para distribuir e na qual a desigualdade permanece intacta ou piorada. Não falo da Venezuela porque a situação é ainda pior.
— Na Europa e nos Estados Unidos, não houve uma guinada para a direita e sim um processo de radicalização. Esta radicalização não é só da direita, pois alguns partidos de esquerda também se radicalizaram. A pergunta é: podemos ter uma radicalização também nos países latino-americanos? Certamente sim. Para nós, estudiosos, é importante entender como se governa uma democracia radicalizada, não só no Brasil, como na Itália, na Alemanha ou em outros países.
Para ele, o ex-presidente Lula teve o “azar” de estar no meio do processo de controle da corrupção:
— Dentro de uma democracia que se radicaliza, os aspectos fundamentais são dois: o controle do processo de corrupção e o papel objetivo político maior da magistratura, dos supremos tribunais e cortes constitucionais, ou seja, das instituições de controle do poder político e da corrupção. É isso que está acontecendo no Brasil. Lula, mais ou menos por azar, foi o centro deste fenômeno. Ao mesmo tempo, um Brasil que cresce e aceita a democracia e não sofre mais uma longa fase de crise econômica deve controlar a corrupção. Infelizmente, este fenômeno não é só brasileiro e sim difundido no mundo inteiro. O Brasil enfrenta o controle da corrupção e Lula se encontrou no meio. É preciso ver os documentos do processo, eu ainda não vi estes tais documentos. Pelo que eu li nos jornais, existem indícios muito fortes contra Lula, embora não exista uma prova definitiva. Considerando a sensibilidade de um personagem assim, provavelmente, ele não tinha nem mesmo a ideia que fosse uma corrupção verdadeira. Porém, o controle da corrupção faz parte do processo democrático em situações de radicalização.
— A violência faz parte da extrema radicalização. A manutenção da ordem civil neste momento representa de novo a oportunidade para os militares, um poder neutral, de desenvolver uma função política. Repito, nas democracias radicalizadas, os poderes neutrais podem desempenhar papeis políticos, como os supremos tribunais, os magistrados e objetivamente até os militares. O professor italiano não crê na possibilidade de uma nova ditadura militar: ele acredita que a classe militar goza de credibilidade por conta do “crescimento econômico no fim dos anos 1960 no Brasil”.
O professor aprofunda o seu ponto de vista sobre a ditadura militar no Brasil.
— A transição brasileira para a democracia é paradoxal. As transições democráticas no leste da Europa são o resultado da deslegitimaçãoda falência econômica. Eles valorizavam os direitos sociais que eram declarados evoluídos pelos regimes de socialismo real. No caso do Brasil, no final dos anos 1960 e 1970, teve um crescimento econômico, bastante desigual, mas a economia cresceu. Neste aspecto, se criou um paradoxo. Diante de um crescimento econômico, pedimos uma mudança de regime porque temos a expectativa de difusão deste bem estar econômico. Não foi tanto Fernando Henrique Cardoso, mas principalmente Lula, que tentou responder esta necessidade de diminuir as desigualdades.
A desvalorização do real favorece investimentos no Brasil ou a instabilidade econômica, política e social afasta os investidores estrangeiros? O professor Morlino responde:
— O Brasil pode ainda atrair investimentos importantes, inclusive muitos investidores italianos estão no Brasil. Ao mesmo tempo, existe o perigo de instabilidade política e social, e isso pode amedrontar os investidores. Portanto, é uma situação de incerteza. Acho que cada investidor decidirá de acordo com as oportunidades especificas do próprio setor, mas agora existe uma situação confusa e incerta.
Eleonora Poli, do IAI, chama atenção para o populismo e a ascensão de Bolsonaro
— A América Latina e o Brasil atravessam um momento de crise política e econômica que infelizmente caracteriza muitos países da esfera global. Por um lado, o uso de um tipo de retórica política populista por vários líderes políticos não facilita o desenvolvimento de instituições democráticas estáveis e confiáveis. Ao contrário dos países da União Europeia, onde os movimentos políticos nacionalistas populistas estão se espalhando, o populismo latino-americano tradicionalmente tem uma visão social inclusiva e, portanto, pode parecer menos perigoso porque não segue reivindicações racistas ou xenofóbicas. No entanto, se analisarmos as tendências no Brasil, como a prisão de Lula e a instabilidade dos últimos anos, não há dúvida de que a retórica populista de fato contribuiu para tornar as instituições mais frágeis. Isso afeta substancialmente o desenvolvimento econômico, tornando os mercados menos atraentes, e gera um impacto direto no desenvolvimento social, com o aumento da pobreza e o aumento da brecha social entre ricos e pobres.
Poli cita os números do IBGE: mais de 50 milhões de brasileiros, ou seja, 25% da população, vivem abaixo da linha da pobreza, com 20 reais por dia.
— Historicamente, o populismo na América Latina está ligado a um desencantamento generalizado da democracia devido à sua incapacidade de lidar com problemas sociais. Segundo as estatísticas, em 2017, o apoio à democracia na América Latina passou de 66,4% para 57,8%. Apenas 49,4% dos mexicanos e 52,3% dos brasileiros acreditam que a democracia seja um bom sistema político, enquanto 38% dos cidadãos da região apoiariam um golpe de Estado se isso ajudasse a combater o crime e a corrupção. Certamente estas são tendências alarmantes, às quais os governos dos países da região devem tentar responder de maneira oportuna.
A especialista chama atenção para a ascensão de Bolsonaro:
Ela analisa a figura de Lula no contexto eleitoral:
— O encarceramento de um ex-presidente poderia, de fato, provar que as instituições no Brasil funcionam e que a lei é a mesma para todos. Falar de injustiça é, em minha opinião, prematuro, porque primeiro é preciso verificar se as acusações contra Lula são reais. No entanto, a midiatização da prisão, especialmente no caso de um líder amado como Lula, que teria ampla oportunidade de vencer as eleições de outubro, não lança uma luz positiva sobre o processo eleitoral no Brasil. O momento e as modalidades de ação poderiam sugerir uma estratégia política clara que visasse eliminar um grande competidor na campanha eleitoral. De fato, seja qual for a verdade sobre as acusações contra Lula, o ex-presidente tem o mérito de ter transformado a economia do país, tirando cerca de 40 milhões de brasileiros da pobreza.
A especialista cita a crescente onda de militarização global.
— Mesmo nos países da União Europeia tem havido uma crescente militarização das cidades devido aos ataques terroristas que ocorreram em algumas cidades europeias nos últimos anos. A percepção da ameaça terrorista também contribuiu para aumentar a crítica nacionalista contra o perigo da imigração e das fronteiras porosas da UE. Isso prejudica a credibilidade das democracias europeias. No Brasil, os problemas de segurança são outros, de natureza interna e ligados à corrupção e ao crime. Sem dúvida, esses dois problemas podem minar a tranquilidade social e a confiança nas instituições locais.
— Acredito que a fluidez da sociedade contemporânea torna o perigo de uma mudança ditatorial menos provável. De fato, hoje em dia, o acesso facilitado à informação torna a manipulação da realidade muito mais simples, gerando notícias falsas e disseminando visões distorcidas da realidade que podem ter efeitos negativos sobre as instituições democráticas. No entanto, a globalização e o círculo de ideias tornam a sociedade de hoje muito menos disposta a se submeter a ditaduras rígidas, especialmente para aqueles que já viveram e combateram um regime ditatorial no passado. Isso não impede que outras formas de limitação das liberdades pessoais se desenvolvam. Nesse sentido, o perigo de uma ditadura militar antiquada não é possível hoje em uma sociedade aberta como a brasileira. No entanto, o problema do fortalecimento militar para restaurar a legalidade pode sair do controle e, portanto, não deve ser subestimado.
A desvalorização do real pode até favorecer trocas comerciais com a Europa, observa.
— O Brasil representa 30,8% do comércio europeu com a América Latina e é a terceira destinação dos investimentos diretos europeus. A desvalorização do real frente ao euro poderia favorecer as trocas comerciais. Todavia, a instabilidade política e a corrupção difundida, além da criminalidade, são pragas que prejudicam o acesso ao mercado brasileiro e a segurança dos investimentos estrangeiros, removendo potenciais novos investidores. Muitas vezes esses fatores contribuem para gerar uma percepção negativa do país que pode ser ainda pior do que a realidade.
Gilberto Bonalumi: após a superação do Consenso de Washington, tensões retornam à América Latina
Segundo o especialista Gilberto Bonalumi, conselheiro científico do ISPI, a América Latina segue um pêndulo.
— Estamos na fase do pêndulo, passamos da situação definida como a recuperação da chamada “década perdida”, quando a América Latina entrou num processo eleitoral onde praticamente quase todos os países superaram momentos da ditadura de governos de direita e voltaram aos processos eleitorais constitucionalmente mais aceitáveis. Era a época na qual também foi superada a gestão econômica estabelecida pelo Consenso de Washington, obra dos economistas John Williamson e Pablo Kuczynski, ex-presidente do Peru que teve que renunciar em parte por causa da corrupção e também porque tinha se relacionado negativamente com o grupo parlamentar ligado ao ex-presidente Alberto Fujimori para tentar permanecer no poder.
O italiano cita a obra do analista e economista venezuelano Teodoro Petkoff, Las Dos Izquierdas, no qual dividiu os governos latino-americanos entre a esquerda borbônica e a esquerda social democrática.
— Lula no Brasil, Michelle Bachelet no Chile, Cristina Kirchner, antes com seu marido Néstor, na Argentina, representavam a esquerda social democrática, que ele considerava praticável e potável. Já a esquerda borbônica era representada pela Venezuela, e os fatos o demonstram de forma dramática, pela Nicarágua e pela Bolívia de Evo Morales. Agora, o pêndulo está restabelecendo governos de direita ou centro-direita, como Sebastián Piñera no Chile, Mauricio Macri na Argentina, Mario Abdo Benítez no Paraguai e, no Equador, com o confronto no mesmo partido (Alianza Pais) entre Lenín Moreno e Rafael Correa. Nestes 30 anos, durante os quais a América Latina cresceu economicamente e superou o Consenso de Washington, os países tinham entrado numa linha constitucionalmente correta com eleições livres e governos confirmados por vias parlamentares. Hoje, se repropõem tensões preocupantes. O Brasil, pela sua dimensão, havia criado uma esperança. Todos se lembram daquela capa da revista The Economist (2009), mostrando o Cristo Redentor no Corcovado que partia como um míssil e representava um grande país que se relançava. Agora reaparecem os governos de direita, onde as últimas eleições são uma confirmação. O Brasil se encontra às vésperas de uma competição difícil, pois o juiz Sérgio Moro, com a Lava Jato, abriu um percurso como a Mãos Limpas na Itália. Além disso, são inquietantes as eleições no próximo mês na Venezuela e a transição em Cuba, depois dos irmãos Castro. Fidel faleceu e Raul deixou o poder, mas continua no cargo de secretário do Partido Comunista e, como prevê o artigo 5 da Constituição cubana, ainda detém o poder. Se necessário, pode intervir, caso o seu sucessor não respeite as linhas de reforma que ele indicou sem revogar a palavra socialismo.
Ele classifica as eleições presidenciais no Brasil como incertas.
— As investigações da Lava Jato ainda estão abertas. Este ex-militar de extrema direita (Jair Bolsonaro) e o ex- governador de São Paulo Geraldo Alckmin ainda não decolaram. João Doria, que se pensava seria candidato à presidência, acabou deixando a prefeitura de São Paulo para se candidatar a governador do estado paulista. Ao mesmo tempo, o Brasil vive uma contradição com Lula, que ainda desfruta de grande consenso popular por causa das suas políticas sociais. A Constituição que entrou em vigor depois da ditadura militar, para facilitar a formação de partidos e as suas capacidades de produzir programas políticos, econômicos e sociais, deu uma liberdade que muitas vezes foi usada de maneira imprópria.
A incerteza deu lugar à esperança
Para ele, o Brasil viveu uma ascensão da esperança porque dois presidentes, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que governaram por dois mandatos consecutivos, apesar de serem diferentes em tudo, “conseguiram encaminhar o país em um percurso positivo”.
— Eles eram incompatíveis, porém tiveram a sabedoria e o bom senso de não destruir as respectivas políticas. Cardoso, como ministro da Fazenda do governo de Itamar Franco, com Rubens Ricupero, promoveu uma mudança da moeda com o Plano Real e sanou uma inflação que alcançava mais de 600%. Lula, nesta recuperação econômica, introduziu políticas sociais, como o Bolsa Família. Estes 16 anos foram propositivos e positivos, depois veio Dilma Rousseff, que foi bravissima como ministra do governo Lula. No entanto, como acontece várias vezes com pessoas que resultam ótimas em segunda linha, Dilma como presidente não correspondeu às expectativas. Portanto, hoje o Brasil vive um quadro de incerteza.
Para ele, o caminho de Lula seguiu a forma como Dilma Rousseff foi destituída.
— Conheço Lula desde os tempos em que era sindicalista, nos encontramos diversas vezes. Não quero dar uma opinião condicionada pela nossa relação de amizade, nem dar uma interpretação errada da decisão da magistratura brasileira. Portanto, há dicotomia neste trabalho de depuração da corrupção no Brasil em relação a um personagem popular que continua a ter um grande consenso, a tal ponto que, se fosse liberado, poderia ser o favorito nas eleições presidenciais. Embora o percurso eleitoral reserve surpresas e o resultado final é sempre imprevisível. A magistratura brasileira tomou decisões com determinação que nunca havia feito no passado. Se tivesse feito com Fernando Collor de Mello, talvez o Brasil já estaria num bom caminho. Assim como a operação Mãos Limpas na Itália, a Lava Jato está mudando o curso da política no Brasil. O problema é verificar se as forças políticas, seja na Itália, seja no Brasil, com as heranças destas operações, têm a capacidade de melhorar a situação. Em alguns casos, vejo a situação piorada, mas não pelas decisões judiciais.
Apesar de alguns episódios preocupantes, Bonalumi, assim como Poli e Morlino, não aposta em uma nova intervenção militar.
— A violência aflige muitos países da América Latina com uma quantidade de homicídios impressionante. O fato do comandante do Exército do Brasil (general Eduardo Villas Bôas) ter se pronunciado pouco antes da decisão dos juízes a favor da prisão do ex-presidente Lula é inquietante. Mas não podemos falar de retorno pleno ao militarismo, apesar de que na Venezuela o presidente Nicolás Maduro é um civil, mas na realidade é um governo militar que rege o país. Assim como em Cuba, é o partido comunista que governa o exército. Já no Chile, a maioria moderada votou em Sebastián Piñera, da direita, porque, anos atrás, junto com os progressistas, ele votou no referendo contra a permanência do ditador Augusto Pinochet no poder — finaliza.