Em entrevista à Comunità, Massimo Bottura, o chef do melhor restaurante do mundo, conta como quer mudar a cabeça das pessoas com o seu projeto de Refettorio, recém-inaugurado no Rio de Janeiro
Em 2015, na ocasião da Expo Milão, o chef italiano Massimo Bottura criou o Refettorio Ambrosiano, onde mais de 65 cozinheiros internacionais prepararam refeições gratuitas para a população em situação de vulnerabilidade social, utilizando 15 toneladas de alimentos excedentes da exposição que iriam ser jogados no lixo. O restaurante comunitário ainda funciona e é administrado pela Caritas Ambrosiana. Menos de um ano depois, em agosto de 2016, Bottura, em parceria com a ONG brasileira Gastromotiva, inaugurou o Refettorio Gastromotiva na cidade sede dos Jogos Olímpicos.
— Não queremos fazer caridade, queremos fazer cultura. Queremos mudar a cabeça das pessoas, devolver dignidade às pessoas, exatamente o que fizemos em Milão — explicou à Comunità o dono do melhor restaurante do mundo, Osteria Francescana, situado em Modena.
Durante os Jogos Olímpicos e Paralímpicos, estrelas da gastronomia mundial elaboraram pratos sofisticados com excedentes não manipulados e doados pela empresa de catering, antes de irem para a Vila dos Atletas ou para os restaurantes da força de trabalho das Olimpíadas.
Entre os 50 chefs que participaram do projeto, estavam os brasileiros Alex Atala e Roberta Sudbrack, o francês Alain Ducasse e o argentino Mauro Colagreco. Os cozinheiros só ficaram sabendo dos ingredientes quando chegavam ao refeitório. Junto com os voluntários e os jovens alunos da Gastromotiva, prepararam jantares gratuitos para 108 crianças e adultos carentes, previamente cadastradas por ONGs parceiras.
A primeira receita realizada por Massimo Bottura foi uma carbonara, realizada com cascas de banana defumadas.
— Precisamos ter na cabeça a ideia de nossas avós que não jogavam fora nada. Aquilo que para muitos é desperdício, para nós é matéria-prima que usamos de forma diferente — destacou o chef originário de Modena, onde vive com sua esposa americana Lara Gilmore e os dois filhos Alexa e Charlie.
Bottura é tão envolvido com as causas sociais que, durante a sua estadia no Rio de Janeiro, decidiu tatuar no braço direito as palavras no more excuses (sem mais desculpas).
— Queremos mudar o mundo. O nosso sonho é este. Basta pensar que na Itália e na França aprovaram leis contra o desperdício. Isso demonstra o que um cozinheiro pode fazer. Pode até influenciar os políticos a fazer algo mais ético, e isso para mim é algo importantíssimo — afirmou, sentado diante de uma obra do artista plástico Vik Muniz: uma reprodução da Santa Ceia de Leonardo Da Vinci feita com chocolate.
O restaurante comunitário situado no bairro da Lapa é acolhedor e decorado com quadros de Vik Muniz, mesas e cadeiras dos irmãos Campana e iluminação de Maneco Quinderé — artistas que, voluntariamente, assinaram a cenografia e o mobiliário do estabelecimento, que ficou pronto em tempo recorde, erguido em um antigo terreno baldio concedido pela Prefeitura do Rio por um período de 10 anos à Gastromotiva, ONG que promove o crescimento inclusivo e de integração social através da gastronomia.
Bottura disse que não foi fácil o início, mas que, após uma semana, as coisas melhoraram e houve um feeling extraordinário entre os cozinheiros e os hóspedes.
— Um das nossas hóspedes relatou que, pela primeira vez em sua vida, teve esse tipo de tratamento, que ninguém nunca tinha falado com ela dessa forma, ninguém nunca tinha apertado as suas mãos. Finalmente alguém diz que este é um projeto cultural, não de caridade! — frisou com orgulho o chef que, com a sua ONG Food for Soul, luta para conscientizar as pessoas contra o desperdício de alimentos e estimular a inclusão social.
Após as Paralímpiadas o Refettorio Gastromotiva vai funcionar como um restaurante tradicional durante o dia e, durante a noite, continuará oferecendo refeições gratuitas à população carente. O valor do almoço já inclui a doação de um jantar para os convidados da noite. Além disso, o estabelecimento servirá como escola de formação para jovens aprendizes com poucos recursos financeiros que poderão aprender pelas mãos de chefs experientes e receber cursos de educação alimentar.
Chef tem planos de abrir o Refettorio em Nova York e em Montreal
O projeto do restaurante comunitário está ganhando cada vez mais adeptos e está se espalhando pelo mundo. Depois do Refettorio Ambrosiano de Milão, do Refettorio Antoniano de Bolonha e do Refettorio Gastromotiva do Rio de Janeiro, Bottura já está pensando em um Refettorio no bairro do Bronx, na periferia de Nova York, em parceria com o ator ítalo-americano Robert De Niro.
— Uma hora atrás me ligou o prefeito de Montreal e me disse que já identificou o lugar onde abrir um Refettorio. As pessoas entenderam a mensagem desse projeto e isso para mim é algo fundamental — revelou Bottura, enquanto se preparava para receber os comensais.
De acordo com ele, a inspiração para criar os seus pratos inovadores vem das suas paixões vividas no seu cotidiano: música, arte e cozinha.
— A inspiração surge a cada minuto do dia porque se há alguém que não se perde no quotidiano sou eu. Se a pessoa se perde na vida cotidiana, cai na nostalgia. Mas se sabe cavalgar no cotidiano, então se torna algo muito positivo — afirmou o autor da sobremesa Oops! Mi è caduta la crostata al limone (Oops! Caiu a torta de limão), que nasceu após um cozinheiro distraído ter derrubado uma fatia de torta no chão.
No início da sua carreira, a reinterpretação de clássicos da gastronomia italiana com métodos inovadores rendeu duras críticas a Bottura, que se redimiu ao ser eleito em junho chef do melhor restaurante do mundo na lista dos 50 Best Restaurant. A Osteria Francescana é o primeiro estabelecimento italiano a alcançar este feito. Apesar do grande sucesso, o chef disse manter os pés no chão.
— Tenho um filho de 15 anos que tem dificuldades e faz terapia continuamente, por isso estou sempre com os pés muito no chão — revelou Bottura.
Enogastronomia como fonte de renda
É muito difícil ser inovador em um país como a Itália, pois é um país cheio de nostalgia, afirma Bottura.
— Temos tanto passado, tanta história e tanta cultura que estamos perdendo isso porque nos perdemos na nostalgia. O segredo para levar a Itália ao próximo século é olhar para o nosso passado criticamente e não com nostalgia, tirar o melhor do passado e levá-lo para o futuro — analisou ele, que comemora 54 anos em 30 de setembro.
Bottura enxerga no turismo enogastronômico um caminho para o país recomeçar, pois “é uma fonte extraordinária de renda para a Itália”. Os visitantes, além de conhecer belas cidades, podem mergulhar no sabor da comida típica do país.
— A minha culinária não é só qualidade de ideias, mas também qualidade de ingredientes que são algo excepcional. No dia 15 de agosto, recebi um telefonema de um artesão italiano que conserva para mim os pomodorini del Piennolo del Vesuvio, tomates pequenos que ele pendura e têm um perfume de fumaça. Todos os anos, nessa data, ele me liga para avisar-me que vai guardar tal raridade — conta Bottura, que enxerga os agricultores, criadores e pescadores como os verdadeiros heróis da Itália.
No futuro, ele gostaria de abrir uma universidade em Modena onde cozinheiros do futuro possam crescer junto aos agricultores do futuro, “de modo que os chefs conheçam melhor o solo e a terra e os camponeses saibam melhor o que significa gosto”.
Dessa experiência em terra brasileira, Bottura, que já esteve no Rio sete vezes, disse que o que mais gostou foram as pessoas.
— O sorriso, a bondade e a humanidade das pessoas é o que me fascina, mas, por outro lado, as pessoas são também o que mais me deixa irritado, a preguiça e a desorganização — avaliou o chef.
Ao ser perguntado sobre o que mais gosta da culinária brasileira, preferiu elencar o que não gosta.
— Muita fritura e fritura mal feita, muito açúcar e muita gordura são usadas nas refeições. Estas coisas deveriam mudar. Deveriam aprender com os italianos. A nossa cozinha é muito saudável e saborosa. E os jovens que cozinham no Refettorio já entenderam isso — concluiu Bottura.