Certos exemplos surgem nos livros de um Vernant ou de um Finley, onde vemos uma participação de múltiplos saberes, voltados para uma construção geral. E não
são pequenos os riscos. Mas é preciso enfrentá-los. E se o erro vencer, há de se preferir um grande erro a um acerto medíocre, para criar novas perspectivas. E quanto a esses grandes erros – ou desvios de paradigmas –, dois gigantes como Vico e Nietzsche acabaram gerando uma guinada nos estudos clássicos, a partir de uma fenomenologia do mito ou de uma nova estética.
Assim, tanto na obra monumental de Wilamowitz-Möllendorff, quanto nas cartas de Jacob Burckhardt, como nas conferências de Cornford – não sendo pequenas as diferenças que os separam –, todos endossam uma conclusão, ao mesmo tempo singela e inevitável: a tradição do Pensamento Ocidental está de todo enraizada no Mundo Antigo. E, assim, pois, um olhar sobre a Grécia constitui sempre, em múltiplas releituras, o ponto de filiação ou desfiliação dessas mesmas raízes – trate-se de um caminho etimológico ou metafísico, de um endosso ou de uma recusa.
Ora, essas considerações fora de lugar têm um motivo concreto. A bela coleção Signos, da editora Perspectiva, dirigida por Haroldo de Campos, acaba de lançar dois livros: A cultura grega e as origens do pensamento europeu, de Bruno Snell. É preciso registrar de imediato o ineditismo de Snell – em nosso país –, que foi um nome de marca o da geração de eruditos alemães, originários de um contexto positivista, recolhendo e classificando uma vastíssima coleção de documentos. Ao receber esse legado, e ao criticá-lo em diversos pontos, menos ambicioso do que um Willamowitz-Möllendorff, Snell procurou repontuar inúmeras questões, que pareciam excessivas em seu predecessor, provocando olhares novos em diversas áreas, como em seus estudos sobre a formação da linguagem científica na Grécia. O livro de Snell não alcança as generalizações da Paidéia, de Werner Jäger, ou as do Principium sapientiae, de Cornford. Mas tampouco se apressa a seguir paralelos incertos, ou forçadas analogias. Snell soube dizer com propriedade e contida emoção as razões da morte de Sócrates:
“Ele não cai no niilismo. Para tanto, três coisas lhe dão sustentação inabalável… A primeira é o demônio, a voz divina que o põe em guarda contra o mal. A segunda é a fé absoluta no significado de uma ação conduzida em conformidade com o que se julga ser o bem, e no valor da tarefa que todo homem tem na vida e que não lhe foi conferida por jogo. Sócrates selou esse ensinamento com a morte. A terceira é a convicção de que o homem participa do universal e do duradouro através do conhecimento; tem portanto o dever de colocar todo empenho, a honestidade e a coerência no conhecer, ainda que não possa chegar a um saber perfeito. Esse é o meio para ampliarmos os confins da personalidade e atingirmos a felicidade”.
Todo um itinerário da felicidade socrática, da eudemonia, que o leva, tranqüilo, para a própria morte…
De Snell ficaram, igualmente, outras contribuições, como – por exemplo – as da origem da tragédia grega e do nascimento do indivíduo, no esquema já consagrado. Da passagem de Ésquilo para Eurípedes, do coro ao destaque do ator, da cantata ao solo, do drama coletivo e familiar – como na maldição dos labdácidas – ao erro de um só homem, da força escura dos deuses à força escura
dos homens.