Os estudos da Grécia seguem mais vivos. Como não sentir na Apologia de Sócrates algo de estranho e de maravilhoso, acontecendo agora, diante de nossos olhos, ávidos e atônitos, que não lidam com um fantasma, mas com um grande pensador, que pagará com a própria vida a sua demanda de verdade? Como não sofrer pelos destinos de Prometeu, com quem, aliás, compartilhamos a mesma sorte, marcados pelo desejo de superar inúmeras fronteiras, a despeito da história e dos deuses? Como não sentir a vertiginosa beleza dos diálogos platônicos, e não sair comovido das páginas do Fédon, sobre a imortalidade da alma, ou não perceber a grandeza dos fragmentos de Heráclito, príncipe do fogo, que tantas marcas deixaria séculos afora?
Não, o mundo antigo não é uma curiosa peça de museu, distante dos desafios do mundo moderno. Diversos cursos de letras clássicas já o compreenderam. E começam a viver atitudes complexas e difusas no ensino da cultura antiga. Ficou definitivamente sepultada (é o que se espera) a terrível separação entre língua e literatura. A gramática deixou de ser um fim em si mesmo e a filologia começou a recuperar suas reais dimensões. As palavras de fogo dos sofistas, e as idéias de Platão voltaram a brilhar, com as grandes pesquisas de Giovanni Reale. Parece que o estudo abrangente vai ganhando maior espaço diante de uma gélida especialidade… Vico e Nietzsche abriram essa estrada. Não admitem a abordagem do mundo clássico, em termos exclusivamente filológicos. Não questionam a necessidade de um terreno firme, de um bom conhecimento material, língüístico e arqueológico. Ignorar, contudo, uma prática maior, de cunho filosófico, implica mobilizar uma grande plêiade informativa, e não lhe emprestar sentido, interpretações de conjunto. É justamente isso o que os centros de ensino começam a perceber…
são pequenos os riscos. Mas é preciso enfrentá-los. E se o erro vencer, há de se preferir um grande erro a um acerto medíocre, para criar novas perspectivas. E quanto a esses grandes erros – ou desvios de paradigmas –, dois gigantes como Vico e Nietzsche acabaram gerando uma guinada nos estudos clássicos, a partir de uma fenomenologia do mito ou de uma nova estética.
dos homens.
Certos exemplos surgem nos livros de um Vernant ou de um Finley, onde vemos uma participação de múltiplos saberes, voltados para uma construção geral. E não
são pequenos os riscos. Mas é preciso enfrentá-los. E se o erro vencer, há de se preferir um grande erro a um acerto medíocre, para criar novas perspectivas. E quanto a esses grandes erros – ou desvios de paradigmas –, dois gigantes como Vico e Nietzsche acabaram gerando uma guinada nos estudos clássicos, a partir de uma fenomenologia do mito ou de uma nova estética.
Assim, tanto na obra monumental de Wilamowitz-Möllendorff, quanto nas cartas de Jacob Burckhardt, como nas conferências de Cornford – não sendo pequenas as diferenças que os separam –, todos endossam uma conclusão, ao mesmo tempo singela e inevitável: a tradição do Pensamento Ocidental está de todo enraizada no Mundo Antigo. E, assim, pois, um olhar sobre a Grécia constitui sempre, em múltiplas releituras, o ponto de filiação ou desfiliação dessas mesmas raízes – trate-se de um caminho etimológico ou metafísico, de um endosso ou de uma recusa.
Ora, essas considerações fora de lugar têm um motivo concreto. A bela coleção Signos, da editora Perspectiva, dirigida por Haroldo de Campos, acaba de lançar dois livros: A cultura grega e as origens do pensamento europeu, de Bruno Snell. É preciso registrar de imediato o ineditismo de Snell – em nosso país –, que foi um nome de marca o da geração de eruditos alemães, originários de um contexto positivista, recolhendo e classificando uma vastíssima coleção de documentos. Ao receber esse legado, e ao criticá-lo em diversos pontos, menos ambicioso do que um Willamowitz-Möllendorff, Snell procurou repontuar inúmeras questões, que pareciam excessivas em seu predecessor, provocando olhares novos em diversas áreas, como em seus estudos sobre a formação da linguagem científica na Grécia. O livro de Snell não alcança as generalizações da Paidéia, de Werner Jäger, ou as do Principium sapientiae, de Cornford. Mas tampouco se apressa a seguir paralelos incertos, ou forçadas analogias. Snell soube dizer com propriedade e contida emoção as razões da morte de Sócrates:
“Ele não cai no niilismo. Para tanto, três coisas lhe dão sustentação inabalável… A primeira é o demônio, a voz divina que o põe em guarda contra o mal. A segunda é a fé absoluta no significado de uma ação conduzida em conformidade com o que se julga ser o bem, e no valor da tarefa que todo homem tem na vida e que não lhe foi conferida por jogo. Sócrates selou esse ensinamento com a morte. A terceira é a convicção de que o homem participa do universal e do duradouro através do conhecimento; tem portanto o dever de colocar todo empenho, a honestidade e a coerência no conhecer, ainda que não possa chegar a um saber perfeito. Esse é o meio para ampliarmos os confins da personalidade e atingirmos a felicidade”.
Todo um itinerário da felicidade socrática, da eudemonia, que o leva, tranqüilo, para a própria morte…
De Snell ficaram, igualmente, outras contribuições, como – por exemplo – as da origem da tragédia grega e do nascimento do indivíduo, no esquema já consagrado. Da passagem de Ésquilo para Eurípedes, do coro ao destaque do ator, da cantata ao solo, do drama coletivo e familiar – como na maldição dos labdácidas – ao erro de um só homem, da força escura dos deuses à força escura
dos homens.