Comunità Italiana

O povo da floresta

 

{mosimage}O ex-governador do Acre Binho Marques fala à Comunità sobre o polêmico Código Florestal e conta detalhes sobre as políticas ambientais desenvolvidas no estado Situado no extremo oeste da Região Norte, o Acre foi a última grande área a ser incor­porada ao território brasileiro e também o primeiro estado a ser governado por uma brasileira, a professora Iolanda Fleming.

— O Acre é um estado particular, bastante dife­rente dos outros estados da Amazônia, Foi até um país: o estado independente do Acre – explicou a Co­munità Binho Marques, governador do Acre de 2007 a dezembro de 2010 e especialista em História Econô­mica da Amazônia.

Nos anos 80, Marques se uniu a Chico Mendes — até hoje uma referência internacional na luta em defesa da Amazônia — para fundar o Projeto Seringueiro, que implan­tou dezenas de escolas na floresta acreana, oferecendo alfabetização para os trabalhadores e suas crian­ças. A trajetória do ex-governador é marcada pela dedicação ao forta­lecimento do movimento social no Acre. O seu projeto de governo esta­va firmado em quatro eixos: gestão participativa; desenvolvimento econômico sustentável; inclusão social; e infraestrutura.

 Até o início do século XX, o Acre pertencia à Bolívia. Porém, grande parte de sua população era de bra­sileiros que exploravam seringais.

 — Durante uma grande seca no Nordeste, em 1877, muitas pes­soas migraram para a Amazônia porque a borracha começava ser um grande produto de exportação. Elas foram subindo os rios para procurá-la. Entraram na floresta sem saber que estavam saindo do Brasil e chegaram aonde hoje é o estado do Acre.

Lá, moravam índios que não tinham praticamente nenhum con­tato com os brancos, conta Binho. No mapa, a região era chamada de “terra não conhecida”, mas perten­cia à Bolívia, e o Brasil reconheceu o fato em vários tratados. Porém, “os brasileiros que chegaram lá não sabiam que estavam entrando na Bolívia”, revela. 

A revolução acreana

Em 1899, os bolivianos tenta­ram assegurar o controle da área, mas os brasileiros se revolta­ram e provocaram os confrontos fronteiriços conhecidos como a Revolução Acreana. 

— O Acre virou um território federal, uma coisa nova que não existia. Os habitantes continua-ram lutando e aumentando a sua identidade como povo, através dos movimentos autonomistas, para que virasse um estado. Ele se tornou um estado mesmo, como os demais da federação, somente em 1962, muito recentemente — comentou ele, que atuou como consultor da Unicef na área de Educação entre 1997 e 1998. 

Tais episódios geraram uma cultura diferenciada no Acre que hoje chamamos de “povo da flores­ta”, define Binho. 

— São os seringueiros que se encontraram com a população indí­gena, que trazia uma nova cultura. É um povo que aprendeu a viver na floresta, a viver dela e com ela. As São gerações que aprenderam a ti­rar dela seu sustento sem destruí-la – analisou o político de 48 anos, fi­liado ao Partido dos Trabalhadores. 

“Lula teve muitas dificuldades durante o seu mandato, até porque temos um parlamento muito conservador, em grande parte dominado pelos agronegócios. Marina Silva, se tivesse sido eleita, eu não sei como sobreviveria” 

Chico Mendes

Entre os seringueiros, uma gran­de liderança foi o Chico Mendes, “um sócio ambientalista que me ensinou a não ter preconceitos, e a dialogar com todos”, relembrou Marques.  

— No começo, tive muitas di­ficuldades de dialogar com Chico, pois eu vinha de um movimento de esquerda dogmático, mas com ele aprendi que não podemos dei­xar ninguém de fora para construir uma sociedade nova — recorda. 

Chico Mendes não era ape­nas alguém que contestava: “era alguém que fazia uma proposta, colocava alternativas”. 

— Ele construiu algo novo chamado Reserva Extrativista: no lugar de fazer reforma agrária e dividir a terra em pequenos lotes, ele pensava em manter a floresta do jeito que estava, sem delimitar, respeitando a visão dos seringuei­ros de não ter propriedade privada — conta. 

Os primeiros assentamentos extrativistas foram criados em 1987 e converteram a floresta em alternativa para a economia.  

— Mas esta evolução gerou o ódio dos fazendeiros, que se senti-ram ameaçados. Eles pensavam que a solução para Amazônia fosse a am­pliação da fronteira agrícola com o agronegócio, substituindo a floresta pelo gado — relatou o especialista. 

Modelo de desenvolvimento

Marques acredita que dentro da flo­resta as pessoas podem ter uma boa qualidade de vida através de uma rede de escolas, centros de saúde e cooperativas. No Acre, criou-se um “modelo de desenvolvimento adequado para Amazônia e para a vida na floresta e a sua cultura, um padrão que pode funcionar para outros povos que vivem do extrati­vismo sustentável”, acredita. 

Para Binho, apesar da morte de Chico Mendes (1988), o movi­mento continuou vivo e avançou com muitos projetos interessan­tes e alternativos, como os pólos agroflorestais em torno da cidade, exemplos de uma economia de pro­dução familiar. 

Entre os projetos, destaca-se a Florestania (cidadania dos po­vos da floresta), que propõe um novo modelo econômico de desen­volvimento sustentável no Acre, explorando a floresta sem danificar o meio ambiente. 

— A educação acreana saiu do último lugar na classificação do Ministério da Educação para estar entre os dez primeiros lugares num espaço de tempo muito curto. Pa­ra que haja um governo justo, uma economia sustentável, é preciso que a população possa estar em condi­ção de protagonizar esses processos e que tenha uma educação — frisa. 

Um dos complicadores para re­alizar os projetos é a dificuldade de acesso à floresta no Acre, lem­bra Binho Marques. No entanto, avançado em vários aspetos, espe­cialmente na legislação ambiental, o estado começou fazer o zonea­mento ecológico econômico em 1999, o que envolveu fatores so­ciais e culturais da população. 

— Antes de virar lei, o zoneamen­to no Acre passou, durante um ano, por um debate na sociedade, desde os pequenos produtores até os grandes fazendeiros, para definir claramente o que cada um ia fazer. As fazenda de gado não poderiam aumentar, impactar na floresta. Existem áreas mais vulneráveis ambientalmente que não podem ser utilizadas. E as­sim por diante — explica.

No Acre, existe um conjunto de leis ambientais. O último consistiu na criação de um sistema de servi­ços para as pessoas permanecerem na floresta e serem remuneradas pela sua manutenção. Marques explicou também outro progra­ma chamado valorização do ativo ambiental, que trabalha com os pequenos produtores de modo que abandonem a antiga prática de des­matamento e queimada. 

— As pessoas cadastradas recebem uma remuneração, um car­dápio de serviços do governo que os atende prioritariamente. Há quatro certificações para provar se estão seguindo as regras. Existe também um sistema de monitoramente por satélite para avaliar se a propriedade avançou ou não no desmatamento para permanecer no programa.

Código Florestal

Sobre as políticas do atual governo, Marques preferiu não comentar, já que se passaram poucos meses da posse da Dilma. 

— O ex-presidente Lula teve muitas dificuldades durante o seu mandato, até porque temos um parlamento muito conservador, em grande parte dominado pelos agronegócios. A Marina Silva, que era do Partido Verde, se tivesse sido eleita, eu não sei como sobre­viveria.

Um dos temas mais polêmicos dos últimos meses é a reforma do Código Florestal, já aprovado pela Câmara e em análise no Senado.

Em geral, quem é a favor das alterações são os ruralistas e os fazendeiros. Isso porque, com o novo Código, novas áreas ficarão disponíveis para o plantio. Co­mo o Código Florestal brasileiro é um dos mais rígidos do mundo, eles acreditam que uma flexibili­zação seria boa para trazer mais lucros e mais produção de alimen­tos no país. A parte mais criticada pelos ambientalistas é o texto su­gerido na Câmara dos Deputados, propondo perdão de multas por desmatamento feito até 2008 sem exigir a recuperação de áreas des­matadas ilegalmente.

Segundo o ex governador do Acre, o debate sobre o Código é mui­to difícil, mas não podemos ficar acanhados porque “o parlamento acaba absorvendo a agressividade do setor pecuarista que é muito grande”. 

 — Por outro lado, é preciso sa­ber negociar porque o Congresso é um campo difícil, que não é tão fa­vorável ao diálogo, e o Jorge Viana (senador escolhido para ser o rela­tor do Código na Comissão de Meio Ambiente do Senado) vai ter muito trabalho com isso — conclui.