{mosimage}Myriam Carvalho, dona da oficina de massas San Felice, conta como a paixão pela cozinha entrou em sua vida através da nonna italiana
Folhas de massa cortadas em quadrados e recheadas com a mistura de carnes bovina e de frango, noz-moscada, salsinha, cebolinha, ovo e farinha de rosca. Essa é a receita dos famosos cappelletti da avó Gera: a massa mais pedida na loja San Felice, a nova oficina de massas da capital.
— Apenas eu os faço de modo artesanal em Brasília, à mão, sem máquina que faça a dobra. Fecho o recheio um por um. Foi um boom, todo mundo que descobriu os cappelletti se apaixonou, sobretudo os italianos que moram aqui — explica a proprietária e chef Myriam Carvalho, filha do ministro da Secretaria-Geral da República, Gilberto Carvalho.
A San Felice abriu sem muito alarde, no dia 27 de outubro (dia do aniversário de Myriam). Em 22 de novembro, aconteceu a inauguração oficial com a presença da imprensa. A proposta da loja é oferecer um produto totalmente artesanal: massas cruas e congeladas e ao mesmo tempo um cozimento muito rápido. Dois minutos em água fervente e a massa já está pronta. Quando o cliente compra a massa, recebe um folheto com as instruções para prepará-la e algumas dicas como “o tempo de cozimento é muito importante: um descuido e perdemos o ponto al dente” ou “vale lembrar que a massa é como a nossa pele, cheia de poros, portanto, não coloque azeite ou óleo na água, pois a gordura lubrifica a massa e impede que ela absorva o molho”.
— Meus clientes são muito variados: há os muitos jovens, os que chegam sozinhos, os casais e os recém-casados. A minha proposta de embalagem de massa individual ou para duas pessoas favorece isso. No final de semana, chegam muitas famílias com pirex: as pessoas escolhem a massa e os molhos e levam para casa já pronto.
A clientela é multiplicada com o boca a boca, explica Myriam.
— Não posso reclamar: desde o primeiro dia em que abri as portas, não param de entrar novos clientes. Um deles me ligou para agradecer, dizendo que proporcionou à sua família um dos melhores almoços de domingo com massa em casa. Isso é muito gratificante — comentou a catarinense, que foi à Itália para aprender os segredos da gastronomia na mesma região de onde veio a sua trisavó, Corinna San Felice.
Como nasce uma paixão
A paixão pela gastronomia nasceu com a sua nonna Gera, que ainda cozinha.
— Ela tem 84 anos e é forte como um touro. Ela ainda canta em italiano. Atende ao telefone dizendo Pronto? Os meus trisavôs eram de Modena e de Mântova, vieram para o Brasil e seguiram as tradições italianas — conta.
O avô era garçom e depois de 15 anos trabalhando, conseguiu comprar uma chácara, onde construiu um salão de festa que se chamava Buffet Carvalho, na qual a avó cozinhava.
— Esse foi um lugar onde eu passei toda a minha infância, junto com os meus primos. Ficávamos em volta da mesa e a nonna nos ensinava: ela cortava os quadradinhos de massa e a gente ia fechando. Era um momento que reunia toda a família — contou a dona da loja que herdou a paixão pela cozinha por causa da avó.
Quase todos os netos passaram pelo Buffet Carvalho. Myriam descreve a sua nonna como uma pessoa que tem muita dedicação ao trabalho, tanto que, quando faleceu o marido, continuou levando o buffet por uns 10 anos.
— Eu e os meus primos, que também trabalham na cozinha, tentamos assumir a gestão, mas ela, típica matriarcona italiana, não deixava de jeito nenhum. Hoje, o buffet não existe mais, pois dava muito trabalho para ela. Mesmo assim, ela não para: é voluntária no hospital como costureira, cozinha para a quermesse da igreja, cozinha na casa dos filhos. Quando vem me visitar na loja, faz crostoli, uma sobremesa italiana típica do Carnaval, que meus clientes adoram.
A formação da chef é internacional: se formou em Hotelaria, em Bragança Paulista, com trabalhos exaustivos à beira do fogão. Ganhou uma bolsa para fazer um curso de especialização em gastronomia no Belpaese e foi convidada para trabalhar em Madrid, onde atuou nas cozinhas do Hotel Meliã e de um restaurante cubano como chef.
A experiência na Itália: entre a desilusão e a especialização
Em janeiro de 2007, Myriam embarcou para a Itália com uma bolsa para estudar em Serramazzoni, um vilarejo de quatro mil habitantes que pertence a Modena, perto de Maranello.
— Na escola, o começo foi difícil, mas depois que expliquei para os alunos que eu não queria ficar, que a minha vida não seria na Itália, teve um que até suspirou então você não vai tirar o nosso trabalho, porque já tinha um problema muito grande da imigração. Eu até entendo um pouco isso, mas a forma com que eu e a minha prima fomos recebida foi mais ou menos assim. Havia o medo de que estávamos ali para tirar o emprego deles — revelou Myriam.
Ela ainda estranhou as famílias, muito menores do que imaginava, e menos unidas.
— O clima familiar não era como eu esperava. As famílias são muito pequenas e há muitas pessoas solteiras morando com os pais até muito tarde, os mammoni. A minha família é muito unida, todo mundo e encontra nas festas de mais de 100 pessoas. Talvez essa decepção tenha sido por ter uma ideia errada do que seria e também por esperar de lá o que existe na minha família italiana daqui — analisa.
Myriam chegou sem falar nada de italiano e foi aprendendo pouco a pouco na escola. Admitiu que teve preconceito por ser latino-americana e por ser mulher trabalhando na cozinha.
— Só havia eu e a minha prima na escola de imigrantes. O restante eram todos italianos. Isso talvez tenha acontecido porque fui para uma cidade pequena. Aos poucos, fomos conquistando a amizade das pessoas. No Brasil, a gente não tem nem direito de ser preconceituoso. Somos um país feito por todos os outros, africanos, espanhóis, italianos, gregos, japoneses, chineses, índios — comenta a ítalo-brasileira.
A realização de um sonho aos 32 anos
Depois de passar dois anos na Espanha, a dona da San Felice voltou a Brasília no final de 2009 para trabalhar no Hotel Meliã.
— A ideia de montar a loja nasceu do meu companheiro Ricardo, da minha família e dos meus clientes que me encorajaram e me apoiaram nesse novo desafio. Não sou empreendedora, sou cozinheira. Sei fazer bem comidas e me dedico muito. Gosto de escolher bem os ingredientes. Decidi fazer massas, pois é o que eu sei fazer bem graças à minha avó e à escola italiana — comenta.
A loja oferece aos clientes 12 tipos de massas recheadas — como ravióli caprese, ravióli de brie e damasco, tortelli di zucca e cappelletoni de ricota e presunto cru — e massas diversas, a exemplo da lasanha, dos rondelli, dos cannelloni e do inhoque. As integrais podem ser combinadas com 10 tipos de molhos, como o de funghi, o pesto e o de gengibre.
O local também vende produtos como antepastos, embutidos, queijos, azeites e vinhos, sendo que muitos são importados da Itália. É possível podem comprar cotechino, zampone e outros produtos difíceis de encontrar no mercado brasileiro. E há sempre novidades.
— Conheci um senhor italiano que vive no Brasil há 15 anos que faz um pesto com baru (uma castanha tradicional do Cerrado) muito bom, o qual vendo na loja. Os clientes são curiosos e querem conhecer novos produtos — comentou, satisfeita, a dona da loja que deixa a cozinha visível para que os clientes possam ver o trabalho.
A massa mais pedida, além dos cappelletti da nonna Gera, são o tortelloni ossobuco e os de queijo com mussarela de búfala, tomate seco e manjericão, ou só de mussarela.
— O molho mediterrâneo com azeitonas pretas, tomate, manjericão e orégano é uma mistura que aprendi na Espanha e na Itália. A massa que menos vende é a de bacalhau , pois no Brasil não há muito o costume de comer massa com peixe — explicou Myriam.
A relação com o pai
Myriam Carvalho sempre se defendeu dos jornalistas que tentavam associar o seu trabalho com a figura do pai.
— Os meus clientes não sabem de quem sou filha. Nunca tive vontade de estar próxima à política. As pessoas me perguntam por que eu não usufruo da facilidade, mas o meu negócio é outra coisa. Tenho um orgulho lascado do meu pai, porque a história dele é fantástica. Ele entrou no governo no primeiro ano do governo Lula, hoje é ministro da secretaria geral do governo e a vida dele não mudou. Meu pai sempre preservou muito os seus filhos. Somos três irmãos do primeiro casamento e agora o meu pai adotou mais duas irmãzinhas que adoram cappelletti e já os fecham com o recheio — conta a cuoca.
Foi o ministro Gilberto Carvalho quem pesquisou a origens da família e achou seus familiares que ainda moram na Itália. Depois de abrir a loja, aconteceu uma coincidência muito bonita: Myriam recebeu uma ligação de uma senhora que lhe perguntou se a Corinna San Felice, citada no vídeo do site da loja, era casada com Egidio Ballarotti.
— Eu confirmei o nome do meu trisavô e a senhora se apresentou como afilhada de Egidio Ballarotti e Corinna San Felice, os meus trisavôs que se conheceram no navio para o Brasil!
Todas as massas e os molhos são artesanais, reproduzindo porque o carinho da nonna.
— Aos 32 anos, tenho um sonho realizado e isso, sem dúvida, me faz uma pessoa muito feliz — conclui a chef ítalo-brasileira.