O Grupo Moitará traz ao Brasil o arlequim italiano Enrico Bonavera para um intercâmbio sobre a máscara e a Commedia dell’arte
Como você imagina arlequim? Alto, baixo, magro ou gordo? Enrico Bonavera, ganhador do Arlecchino d’Oro, a máxima premiação dedicada a este gênero na Europa, é magro, mede 1,71, tem rosto comprido, olhos e cabelos castanhos e um nariz tipicamente italiano.
O ator do prestigiado Piccolo Teatro de Milão capturou a atenção da plateia do Teatro Serrador do Rio de Janeiro, no dia 17 de maio, através da sua energia e de suas capacidades mímicas, acompanhando o público em uma incursão no mundo das máscaras e da Commedia dell’arte com a demonstração do trabalho Os segredos de Arlequim.
— Para ter teatro, é preciso ter atores cheios de paixão, vícios e pecados — explica à Comunità Enrico que, depois do Rio de Janeiro, foi a São Paulo e a Campinas para ministrar um seminário sobre a Commedia dell’arte, e continuou a viagem em Ouro Preto para fazer masterclass e uma demonstração do seu trabalho.
Durante o encontro Os segredos de Arlequim, o ator italiano apresenta de forma divertida e apaixonada a famosa Commedia dell’arte, um gênero teatral surgido na Itália em meados do século XV, criado através de um canovaccio, uma espécie de roteiro bastante aberto, que indicava aos atores quais eram as máscaras para aquela história e qual era a relação entre elas, além de traçar um caminho para orientá-los na improvisação de falas e cenas.
— A Commedia dell’arte pode ser vista como um jogo de futebol em que tem uma parte fixa e uma parte móvel. Os personagens e os papéis são fixos, enquanto os intérpretes são variáveis, e variável também é o jogo, a improvisação — explica Bonavera, que define esse gênero como um teatro de grande rigor e, ao mesmo tempo, de grande liberdade, realismo e loucura juntos.
Nas histórias, que inicialmente se concentravam na relação entre os patrões e os servos camponeses, logo após a entrada das mulheres nas companhias de teatro, entraram também os jovens enamorados e as intrigas de amor como temas.
Além das tramas, o que realmente fez sobreviver a Commedia dell’arte por três séculos e ser retomada no século XX foi a máscara, que é também o ponto fundamental do teatro de Enrico Bonavera e objeto de pesquisa do grupo teatral brasileiro Moitará.
A máscara: elemento pedagógico que une Rio à Itália
— A máscara é universal porque representa o homem com os seus medos e as suas obsessões e representa um elemento comum em todas as culturas. Onde há homens, há máscaras. Do Tibete, até o México, assim como na África, no Extremo Oriente, na América do Norte e na Itália, na região do Alto Ádige — afirma entusiasta Bonavera, um dos maiores intérpretes da Commedia dell’arte.
Enrico Bonavera pode se orgulhar de ter interpretado mais de 500 vezes Brighella e 170 o papel de Arlequim na famosa peça O servidor de dois padrões, dirigido por Giorgio Strehler, um dos fundadores do Piccolo Teatro de Milão, que faleceu em 1997 em Lugano (Suíça).
Segundo ele, do ponto de vista pedagógico, a máscara é ótima, pois exige do aluno uma geometria dos movimentos e o educa para uma gramática da cena muito limpa, com tempos e ritmos precisos.
— Além disso, a improvisação cria um estímulo para ler a situação dramática, sem ter que ser escravizado pelo roteiro. Por isso, é preciso um ator criativo — explica o ator e também professor da Escola de Recitação do Teatro de Gênova.
Os intercâmbios artístico-pedagógicos com atores italianos, entre os quais o último com o Arlequim italiano, acontecem há mais de cinco anos em terras brasileiras e se inserem no projeto de pesquisa que o Grupo Moitará está desenvolvendo desde 1988 sobre a dramaturgia do ator com a linguagem da máscara teatral.
— A máscara é um veículo tanto de treinamento pedagógico, quanto de processo criativo nos nossos trabalhos. No Brasil, fomos os pioneiros no estudo da máscara, desde a confecção até o trabalho do ator — declara à Comunità Venício Fonseca, diretor do Grupo teatral Moitará, cuja sede está localizada no bairro carioca da Lapa.
Tudo começou em 1990, quando o grupo teatral foi para Abano Terme, na província de Pádua, para aproximar-se do Centro Maschere e Strutture Gestuali, fundado pelo renomado escultor e mascareiro italiano Donato Sartori, que criou máscaras para vários atores e diretores do mundo, entre eles, Barrault, Eduardo de Filippo, Giorgio Strehler, Lecoq, Dario Fo, Ferrucio Soleri, Enrico Bonavera e Peter Oskarson.
O Grupo Moitará considera o Sartori um “mestre-amigo”.
— É uma referência do trabalho com a máscara, sobretudo no que concerne à confecção. Em nossa sede, produzimos máscaras também. Em nosso último espetáculo, que foi Acorda Zé!, três máscaras foram feitas por Donato Sartori e uma fui eu que fiz — revela Venício que, junto com Erika Rettl, fundou o grupo teatral há 25 anos.
Essa amizade e colaboração com Sartori deu origem, em 2008, a uma exposição de máscaras feitas pelo escultor, que percorreu várias cidades brasileiras, e também a um workshop com o diretor italiano e fundador do Odin Teatret, Eugenio Barba, e da atriz britânica Julia Varley.
Enrico Bonavera, que já tinha feito um seminário na Unirio em 2002 e, em 2008, apresentou Arlecchino all’inferno, no Rio de Janeiro, voltou à capital fluminense a convite do Grupo Moitará.
— Essa vinda do Enrico em específico faz parte de uma premiação que o Grupo Moitará ganhou, o prêmio Funarte de teatro Myriam Muniz. A nossa proposta foi a manutenção do grupo através de várias atividades, entre as quais essa relação de intercâmbio com o ator italiano — diz o diretor, que também organizou um seminário entre os dias 20 e 24 de maio, na sede da companhia com Bonavera.
Entre as atividades que se enquadram no prêmio, a última vai ser a oficina de confecção de máscaras, do dia 15 até o dia 29 de julho, na sede da companhia teatral direcionada aos profissionais do teatro, mas aberta também para educadores e cenógrafos.
De acordo com Enrico Bonavera, a Commedia dell’arte, por um lado, representa a vida porque a máscara simboliza os problemas e as pessoas. Por outro lado, esse fenômeno teatral, surgido entre o final do Renascimento e o começo do Barroco, não contempla todas as figuras da sociedade atual.
— Podemos encontrar personagens típicos, como o doutor, o comerciante, os camponeses, os amantes. Mas faltam os artesãos, os prelados, a nobreza. Falta muita parte da sociedade — afirma o ator, que considera que esse gênero teatral nasceu da observação da realidade traduzida através do corpo.
A Commedia dell’arte ainda é atual e pode ser vista até na vida de um país.
— A política italiana é commedia dell’arte, pois os políticos viraram tipos fixos, personagens de si mesmos, estão sempre lá. São sempre as mesmas pessoas — enfatiza Enrico, que critica os cortes na cultura que o governo italiano vem fazendo há vários anos.
— É uma loucura. A Itália é um país que poderia viver de cultura, basta pensar nas coisas que inventamos: o melodrama, o teatro profissional, além do clamoroso patrimônio arqueológico e artístico que temos e das tradições literárias e musicais — desabafa o ator italiano.
— Estamos sentados no paraíso e não nos damos conta porque não conseguimos mandar embora aqueles que transformaram o paraíso em uma porcaria — finaliza.