Comunità Italiana

Pai herói

Com a ajuda de um veterano de guerra britânico e um editor italiano, músico do Pink Floyd finalmente descobre em que local da Itália e em que circunstâncias morreu seu pai em uma batalha dos aliados na Segunda Guerra

A vida de Roger Waters, o genial baixista e compositor do Pink Floyd, foi marcada profundamente pela morte do pai, falecido durante a segunda guerra mundial, quando o filho tinha apenas cinco meses. Uma ausência que provocou insuficiências e evocou fantasmas, influenciando grande parte da produção artística do músico britânico e do Pink Floyd. Obras-primas, como os álbuns The Final Cut e The Wall, possuem faixas abertamente antimilitaristas com uma clara rejeição contra as armas e a guerra. A falta de um pai, nunca conhecido, pode facilmente se tornar uma obsessão e alimentar dúvidas, interrogações e tormentos. Roger Waters não somente nunca teve como encontrar o próprio pai, mas também, até há pouco tempo, não tinha notícias de como ocorreu sua morte e não possuía sequer um lugar onde chorá-la.
A guerra, uma entidade indefinida, parecia ter engolido no nada a feliz vida de Eric Fletcher Waters, nascido em 1913, em uma região no norte da Inglaterra. Cristão praticante e pacifista convicto, Eric F. Waters ficou transtornado com a ascensão do nazismo e se aproximou dos ambientes da esquerda radical, até se inscrever no Partido Comunista Britânico. O ódio às ditaduras que se afirmavam na Europa o levou a superar a repulsa às armas e se inscrever no Exército para defender a liberdade dos povos. Tornou-se segundo tenente da companhia C do 8º batalhão dos fuzileiros reais e foi enviado para o front italiano. No dia 18 de fevereiro de 1944, enquanto ocorriam os combates entre as forças aliadas e as tropas nazistas, durante a linha Gustav, Eric F. Waters foi atingido e morreu.
Por muitos anos, acreditou-se que teria sido morto na batalha aos arredores de Montecassino, mas o corpo nunca foi encontrado. O seu nome, junto com os de centenas de outros soldados, foi gravado em uma estrela erguida no cemitério de Cassino para comemorar os tantos militares aliados que não receberam uma sepultura digna.
— O meu passado é o meu futuro. A minha viagem termina aqui — disse, emocionadíssimo, Roger Waters, em novembro passado, depois de ter visitado o memorial,
Mas a viagem e a descoberta da realidade a das próprias raízes havia somente começado.
— Um dia me telefonou Henry e me perguntou se conhecia um músico de um certo grupo de rock. Quando me disse de quem se tratava, não acreditei em meus ouvidos — conta Emidio Giovannozzi, dono de uma pequena editora de Ascoli Piceno, que ajudou a esclarecer a morte de Eric F. Waters.
Henry é Henry Shindler, um empreendedor de 93 anos e veterano do Exército britânico que vive em Porto d’Ascoli e se ocupa, há décadas, de recolher notícias sobre os aliados falecidos na Itália.
Em 2008, o veterano publicou um livro, confiando à editora de Giovannozzi, que é também um notável cartunista, músico e grande apaixonado por Pink Floyd. Entre os dois nasceu, subitamente, uma profunda amizade.
— Henry leu nos jornais a declaração feita por Roger Waters ao término de sua visita a Cassino. E a viu quase como uma afronta, pois sabia que o batalhão do qual fazia parte o pai daquele homem não havia combatido em Monteccassino e, portanto, concluiu que aquele senhor deveria prosseguir a sua viagem. Ele aceitou o desafio e foi para Londres, na sede dos Fuzileiros Reais, cujo arquivo conserva os documentos por somente 70 anos — continua Giovannozzi.

Diário de guerra preservado nos arquivos britânicos revelou detalhes
Se tivesse esperado mais um mês, as informações que Henry Shindler procurava teriam sido destruídas. Ele conseguiu encontrar a página do diário de guerra do tenente-coronel Joh Oliver-Bellasis, datada em 18 de fevereiro de 1944, com a escrita Waters Killed. Na mesma página estavam anotados os números “830300”, ou seja, as coordenadas do lugar no qual foi deslocado o 8º batalhão de fuzileiros naquela manhã de 1944.
— Foi nesse ponto que entrei no jogo. Ao inserir as coordenadas no Google Earth e em serviços de satélites, me dei conta que deveria decodificar aqueles números. Intrigado pela história e motivado pela grandeza do personagem, mergulhei de cabeça em uma longa e detalhada pesquisa sobre os métodos de rastreamento dos mapas militares britânicos e os fatos ocorridos em Anzio da metade de fevereiro de 1944 em diante — explica o editor italiano.
Depois de algumas semanas, chegou-se a uma conclusão:
— Descobri que uma coordenada de seis cifras corresponde a um quadrado de 100 metros de lado em um mapa militar e consegui traçar um mapa britânico de Anzio, de 18 de fevereiro de 1944, com todas as posições em campo dos vários regimentos e batalhões aliados. Adivinhado o ponto exato, coloquei sobre ele uma visão de satélite do Google Earth e apurei que o pai de Roger Waters foi morto enquanto estava no campo ao sul de Aprilia, um lugar que combinava exatamente com a descrição geomorfológica contida no diário de guerra.
Trata-se de uma extensão plana, envolta por montanhas, ao lado de um rio. Foi então que Roger Waters pôde imaginar as circunstâncias nas quais havia morrido seu pai. E o fez explicitamente em When the Tigers Broke Free:
“Ninguém sobrevive a Companhia C dos Fuzileiros Reais/ Foram todos deixados para trás/ A maior parte morta, os outros para morrer”.
A 69 anos daquele trágico evento, o músico do Pink Floyd pôde recompor o quebra-cabeça da sua memória. Ao cruzar testemunhos, recordações e documentos, mas, sobretudo, em virtude da descrição detalhada contida no diário de guerra, Shindler e Giovannozzi conseguiram reconstituir as últimas horas de Eric F. Waters:
Na manhã de 18 de fevereiro de 1944, a companhia Z do 8º Batalhão dos Fuzileiros Reais, junto às companhias, X, Y e W, encabeçavam a linha de frente em uma ponte, posicionadas em um fosso nas margens do rio Moletta, ao sul de Aprilia. Em 16 de fevereiro teve início a contraofensiva alemã, denominada Operação Fishfang, que objetivava dividir a cabeceira da ponte aliada. Nas primeiríssimas horas da manhã do dia 18, sob as ordens de Kesserling e Von Mackensen, o Regimento Lehr e o Primeiro Corpo de Paraquedistas, agregados a 3ª Divisão Panzergrenadier, iniciou uma pesada contraofensiva no setor ocupado pela Companhia Z, a qual, por volta de 11:10h, se encontrou circundada pelo inimigo e atacada, frontalmente, por tanques. Às 11:30h, Eric F. Waters, que estava no pior ponto, ou seja, nas proximidades da única passagem possível para os tanques, perdia a vida.
Poucos minutos após a morte de Eric F. Waters, o capitão William H. McKay ordenava à artilharia pesada aliada um maciço fogo de barragem, que se concentrou junto às posições ocupadas pelo batalhão.
— Esse momento poderia explicar porque não o corpo não foi encontrado — nota Giovannozzi.
Shindler contata o empresário de Roger Waters para comunicar as descobertas ao filho do oficial britânico morto na guerra. Poucos minutos depois, recebe um telefonema do gênio do Pink Floyd, particularmente emocionado ao receber as novas notícias.
— Poucos dias depois, Henry veio me encontrar e explicou-me que recebeu de Waters um texto dedicado ao pai. Estava convencido que se tratava de When the Tigers Broke Free, mas o baixista do Pink Floyd disse a Henry que era o único a ter uma cópia — conclui Giovannozzi.
A poesia inédita, comovente e apaixonada, escrita especialmente por Waters, levava o título de Um só rio:
“Não consegue entender que o luto de outros pais / Nega o elo forjado no sangue filial / E a bandeira reluzente passou de homem para menino / Ao lugar da honra, forte, privo de mesquinhez e rancor. / Então / Recolhe as tuas lágrimas, disse meu pai / Recolhe em um copo aquela medalha de sal / Flui de um único rio / Naquele rio, meu filho / Atirei a minha vida”.
No próximo dia 18 de fevereiro, Shindler e Giovannozzi encontrarão Roger Waters em Aprilia, no Lácio. Na presença do prefeito e das maiores autoridades locais, será inaugurado um monumento para recordar, após 70 anos, Eric F. Waters e todos os militares aliados mortos durante o confronto de Anzio, que não foram sepultados.