Reconhecimento oficial do dialeto vêneto-brasileiro representa uma vitória dos imigrantes italianos após décadas de luta por reconhecimento cultural
Para quem acreditava que o Brasil era um país falante de um único idioma, o reconhecimento de três novas línguas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) marca o início de uma nova era de descobrimento da diversidade linguística nacional. Três línguas — duas indígenas e uma de imigração — acabam de ser certificadas como Referência Cultural Brasileira, passando a integrar o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL), novo instrumento criado pelo governo para fomentar a preservação das expressões linguísticas enquanto patrimônio cultural brasileiro. O que poucos sabem é que a instituição desta política nacional foi consequência direta das ações de mobilização e pressão de uma destas comunidades linguísticas: a dos imigrantes italianos.
Apesar de pouco conhecido no resto do Brasil, o talian, o dialeto vêneto-brasileiro, é utilizado desde o final do século XIX por parte da comunidade de descendentes nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, onde há muitos anos já é considerado patrimônio histórico e cultural. Baseado no dialeto vêneto, com influências do português e do italiano, possui uma população falante engajada, considerada responsável por impulsionar todo o processo que decorreu na adoção de uma política nacional de defesa da diversidade linguística. Utilizado por jovens, adultos e idosos também no Paraná e no Espírito Santo, conta com mais de 300 obras publicadas, entre romances, dicionários, livros didáticos, gramáticas e cursos pela internet. Além disso, centenas de radialistas propagam a língua diariamente para seus ouvintes.
— Este é o primeiro resultado de uma política que se pretende muito ampla, de proteção da diversidade linguística. Esses três primeiros estudos estavam mais adiantados, mas o que se pretende é estender ao maior número possível de línguas, para que tenham direitos e, enfim, a proteção do Estado — explica a presidente do Iphan, Jurema Machado.
As três línguas e os representantes de suas comunidades foram homenageados durante o Seminário Ibero-americano de Diversidade Linguística, em Foz do Iguaçu (PR), de 17 a 20 de novembro. As outras duas línguas reconhecidas foram o asurini do Trocará, falada pelo povo indígena Asurini, que vive às margens do Rio Tocantins, no município de Tucuruí (PA), e o guarani mbya, uma das três variedades modernas do idioma Guarani. Os critérios para o reconhecimento de uma língua pelo Iphan exigem que seja falada em território nacional há, pelo menos, três gerações, com um marco temporal em torno de 75 anos. É preciso demonstrar o seu papel como elemento de referência cultural para seus falantes, inserida nas dinâmicas socioculturais das comunidades. O primeiro passo para o pedido de reconhecimento de uma língua é a produção de conhecimento e documentação sobre seus usos, com dados e informações que permitam um diagnóstico sobre a sua vitalidade.
A língua como alicerce de uma cultura
— O reconhecimento do talian é também o reconhecimento de todos os outros dialetos da imigração italiana falados no Brasil, como o trentino ou o bergamasco, como fonte de cultura — afirma Paulo Massolini, presidente da Federação das Associações Ítalo-Brasileiras do Rio Grande do Sul (Fibra), instituição que batalhava desde 2001 junto ao governo federal pelo reconhecimento.
Massolini destaca que, com a oficialização, a língua terá agora a oportunidade de ser contemplada com ações de valorização e tutela pelo poder público, principalmente na área de educação. O risco de desaparecimento foi um dos aspectos que vieram à tona no estudo produzido em 2009 pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), no âmbito do processo de reconhecimento junto ao Iphan. Segundo a pesquisa coordenada pela professora Marley Pértile, doutora em Letras e especialista em Bilinguismo e Línguas de Imigração, que radiografou a situação do talian no Brasil, a perda linguística de uma geração para outra pode chegar atualmente a 36%. Com o reconhecimento oficial, vem também o status.
— As pessoas agora vão se sentir mais valorizadas por usarem a língua como instrumento de preservação da cultura, pois ela é um dos alicerces da cultura da imigração — destaca.
— O talian não é apenas uma língua para nós, é uma maneira de ser, que inclui usos, costumes e tradições — resume Massolini, para quem a melhor maneira de preservar o legado deixado por todos os imigrantes italianos que superaram as dificuldades em um país desconhecido é manter viva a sua língua.
Município de Serafina Corrêa festeja a novidade
O prefeito do município onde o talian detém relevância tanto quanto a língua portuguesa, Ademir Antônio Presotto, comemora a notícia.
— Agora, iniciamos uma etapa que nos enche de orgulho e que nos faz buscar alternativas de, cada vez mais, manter viva a língua talian e de transmitir, de geração em geração, o legado de coragem, trabalho e fé dos imigrantes italianos — afirmou.
A cidade de Serafina Corrêa, localizada na Serra Gaúcha, com cerca de 15 mil habitantes, foi a precursora do movimento de preservação do idioma quando, em 1988, um decreto municipal o instituiu como língua oficial. Na época, atraiu críticas do governo federal, que considerou a medida como uma ameaça à soberania nacional. Em 2009, a cidade foi novamente pioneira ao se tornar a única no Brasil a cooficializar o talian. Além de promover o ensino do dialeto nas escolas municipais, a cidade organiza eventos para promoção da música em talian, como o tradicional Festival Cantigio. A língua permanece forte nas comunidades rurais e emissoras de rádio transmitem programas exclusivamente falados no idioma.
— Para nossa cidade, a importância desse reconhecimento é ímpar, um momento de resgatar valores, de escrever e preservar a nossa história que passa, obrigatoriamente, pela imigração italiana — acrescenta Presotto.
Uma mistura de dialetos italianos formada no Brasil
Em 1994, em um encontro promovido pela Massolin de Fiori Società Taliana, de Porto Alegre, surgiam as bases da unificação da grafia do dialeto vêneto falado no Brasil. Naquele mesmo ano, o professor e escritor Darcy Loss Luzzatto publicava a primeira gramática do talian, abrindo espaço para dezenas de outras publicações, desta vez com a gramática unificada. Neto de trentinos e beluneses e autor de diversos livros de gramática taliana, entre elas o Dissionàrio Talian-Portoghese (2010), é um dos grandes ícones do movimento.
— A nossa língua é um dos pilares da nossa cultura; sem ela, a cultura morre — afirma o professor, que, aos 78 anos de idade, ministra cursos de língua talian em diversas cidades da Serra Gaúcha.
Luzzatto explica que os imigrantes precisavam constantemente adaptar sua linguagem para que conseguissem se entender. Aos poucos, palavras brasileiras foram sendo inseridas no vocabulário, mas com uma sintaxe vêneta, já que a maioria dos imigrantes era de origem vêneta. A palavra tamanco, que em italiano fala-se zoccolo, em talian, acabou virando tamanchi.