Comunità Italiana

Passaporte verdadeiro

{mosimage}Italiana de nascimento e brasileira de coração, uma das maiores gravuristas do país fala da sua exposição, aberta ao público no CCBB de Brasília até janeiro

Gravadora, escultora, pintora, muralista, curadora, figurinista, cenógrafa e professora. Maria Bonomi é uma artista a 360 graus que transpõe o universo da gravura para vários materiais e inúmeras possibilidades. A frase “Um artista não fala, faz”, dita por ela durante a inauguração da sua exposição, em 12 de outubro, retrata sua produtiva trajetória que se desdobra em múltiplas formas de arte. O público poderá conferir até 8 de janeiro 250 obras reunidas na mostra Maria Bonomi – da Gravura à Arte Pública, no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Brasília. Trata-se de uma grande oportunidade de conferir seu percurso artístico, desde as primeiras pinturas feitas na infância até as últimas peças criadas em seu ateliê em São Paulo. 

— Este é um mergulho em profundidade e amplitude na obra de Maria — afirma o curador Jorge Coli. 

Três núcleos conceituais dividem o espaço do CCBB: a formação, a arte política e o universo feminino — suas grandes “obsessões”, temas que permeiam a sua obra desde o início, explicou o curador. 

Maria Bonomi concorda com essa divisão da exposição, a qual considera “brilhante” pelo fato de ser dividida em núcleos.

— É a maior exposição dela até hoje, que une também obras que não estão acabadas, como é o caso de A ponte, que ainda está em processo de elaboração — comenta Paula Sayão, gerente geral do CCBB de Brasília.  

Foi a artista quem escolheu Brasília e, mais precisamente, o CCBB como palco da grande realização. 

— Ela fez algumas obras inéditas para dialogar com a obra de Oscar Niemeyer, porque esse prédio é dele. Bonomi tem ligação com essa arquitetura e com esse artista brasileiro. Teve obras pensadas para o espaço. Há a sala feminina e uma parte política com obras que demonstram indignação com alguns temas. Na segunda galeria, estão as obras mais recentes que abordam questões ecológicas e mais atuais. Tem também uma sala educativa onde as crianças retalham madeira e experimentam um pouco do processo de criação da artista para fazer as matrizes, para poder imprimir na gravura — explica Sayão.

Origens
Maria Bonomi nasceu na cidade de Meina, no Piemonte, em 1953. A família passou por diversos países até chegar ao Brasil, em 1946, onde optaram por morar em São Paulo. Assim como milhares de famílias de outros países, os Bonomi buscavam no Brasil um novo lugar para viver, distante da terrível cena da Segunda Guerra Mundial. O Brasil transformou-se na pátria de Maria Bonomi, ao ponto de se considerar mais brasileira do que italiana. 

— Sou uma italiana recente. Apesar de ter nascido na Itália, tenho o passaporte italiano há menos de um ano e espero aproveitar bastante — conta.
A inauguração da exposição foi um dos eventos escolhidos pela Embaixada da Itália para dar início, oficialmente, na capital federal, ao Momento Itália-Brasil (MIB), iniciativa com quatrocentos eventos em 18 estados brasileiros até junho de 2012.

Retrospectiva
A exposição deve ser vista como a realização de um sonho: o de estar na cidade que ela conheceu “quando era apenas uma caixa de slides”.  
— Eu era apenas uma estudante nos Estados Unidos e passeava pelas universidades americanas, mostrando esse projeto de Lucio Costa e Oscar Niemayer nos anos 50 — frisa Maria Bonomi, aos 76 anos.
O curador da exposição a descreve como uma artista que não se contenta em debruçar-se sobre matrizes com precisão e rigor, mas que segue todos os processos, até a impressão final, em um controle cuidadoso. 

— Também não se contenta em assistir, tranquilamente, aos desmandos do mundo: denunciou e denuncia as injustiças sociais e os abusos políticos. Essa força convicta invade a sua arte e está nela sempre presente, às vezes evidente, às vezes infiltrada, no puro gesto criador — relata Jorge Coli, doutor em estética pela Universidade de São Paulo (USP).

“Idiotização” do feminino
Na sala chamada Útero estão reunidas obras que são vinculadas à sensibilidade feminina, sentidas como tais pela autora. Na entrada, os visitantes assistem ao vídeo A implosão de Paris Rilton (assim mesmo, com R, e não com o H da personagem que povoa as notícias de celebridades). Trata-se de uma obra abstrata na qual ela nos convida a pensar sobre a nossa sociedade, através de uma crítica mordaz ao mundo das celebridades. Ao centro da sala, observa-se uma escultura recente de Maria Bonomi, que vem exposta pela primeira vez, Paris Rilton, de 2010. Em formato de ovo, tem uma superfície brilhante cujos relevos evocam reentrâncias orgânicas. Seu interior pode ser atingido, como o filme na entrada demonstra. A própria artista explicou o significado da escultura em bronze de 21 quilos, abrindo um pedaço da obra e extraindo objetos de consumo feminino, como bolsas, sapatos de salto alto e sutiãs. 

— Eu criei a obra especialmente para a mostra, pois precisava criticar essa idiotização da figura feminina, relegada a um consumismo desenfreado estimulado pela propaganda preconceituosa — explica a artista ítalo-brasileira. Entre as obras históricas deste tema, estão as xilogravuras Sappho I, de 1987; Homenagem a Nara Leão, de 1969; as séries Medusa, de 1998; e Hydra, de 2000/2001. A série em litogravura intitulada Acrobata, de 2001, integra a ala, além dos pequenos quadros que Maria pintava quando tinha 15 anos, como Fugindo da escola.

Da sala feminina, “o útero” desce para a sala inferior, “o calabouço”. Nele, estão as obras marcadas pela indignação política da artista. O espectador é conduzido por uma passagem estreita e afogada. Muitas dessas obras foram criadas durante o período da ditadura militar no Brasil, como Balada do terror, de 1970. Uma das questões mais fortes para a artista é a liberdade. 

— As revoltas que aconteceram na Tunísia e no Egito mexeram muito com ela — comenta Coli, ao olhar para a obra Cairo january 2011, uma gravura digital em cima de uma foto da Praça Tahir, no Egito. Em papel nepal, Pré-Tetraz, de 2003, conta a história de Tetraz, um tipo de ave que habita o Hemisfério Norte. Muito colorido e agressivo, quando se expõe, sofre perseguições de outros animais, o que o obriga a viver solitário. A palavra tectriz significa cada uma das penas que revestem a cauda ou as asas de uma ave. 

— O tetraz é um pássaro que aparece para o caçador, dá um grito e é morto. Somos nós que estamos sendo consumidos pela nossa beleza, pela nossa aparência. Estamos nos matando e nos deixando matar — comenta Bonomi.

Na parte dedicada às obras em processo ou recém-feitas pela artista, destacam-se as gravuras A ponte e O pente. A ideia foi a de não concluir a mostra, de não pingar um ponto final, mas deixá-la em aberto com uma promessa de continuidade: a artista continua incessante em sua produção. Por isso, a ponte representa uma ótima metáfora da transitoriedade da vida, com seu território movediço e instável. A passagem azul remete ao caminho rumo ao desconhecido, com margens ausentes. 

Nas obras de 2011, como Trozo e Lena, percebe-se o olhar de Maria Bonomi voltado à tecnologia e às novas linguagens, território que ainda está sendo explorado pela artista. Ela iniciou um processo de aprendizado em gravuras digitais nos Estados Unidos.

Mestre na arte da gravura
Maria Bonomi afirma que a gravura tem um caráter muito duro e incisivo.

— A gravura não é frívola. Ela tem um caráter muito duro, muito decisivo. Não tem volta. Tem características infernais. Solicita uma entrega muito grande. A gravura não é glamorosa, não tem esse lado festivo que talvez outras artes possam ter — explica.

A artista considera a gravura uma forma de linguagem. 

— Assim como se tem o cinema e a pintura, se tem a gravura, se tem a dança, a fotografia, o teatro. Não é um corredorzinho que permite que você multiplique cópias, multiplique pinturas. É uma linguagem expressiva, autônoma e independente. O artista pensa como gravador — define.

Poderíamos dizer que os conflitos entre o material e a ideia sejam a própria essência da sua obra em todas as linguagens, comenta o docente e amigo Jorge Coli. 

— Então, ela vive do conflito. Isto pode parecer paradoxal e inquietante, mas é verdadeiro.