Filho do ator e dramaturgo italiano Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), o cientista social Fernando Henrique Eduardo Guarnieri acabou seguindo a carreira da mãe, Vanya Sant’Anna, que, apesar de ter atuado no teatro na juventude, abraçou a ycarreira de socióloga a partir de 1967. Professor adjunto de Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/ UERJ) e formado pela USP, Fernando hoje tem 50 anos e já morou na Itália e nos Estados Unidos, onde foi pesquisador visitante na
Universidade de Maryland College Park. Autor de estudos sobre política brasileira, Fernando Guarnieri conversou com Comunità em sua sala do IESP, no Rio, e fez uma análisesobre as eleições presidenciais brasileiras. Ele explicou os reais motivos que estão por trás da ascensão dos chamados outsiders políticos e candidatos antissistema no Brasil, na Itália e no mundo.
ComunitàItaliana — Para o sociólogo Demétrio Magnoli, a marca dos outsiders da política é não reconhecer aquilo que a ideologia proclama, que é a diferença de interesses. O senhor concorda?
Fernando Guarnieri — Eu não definira o outsider pela ausência de ideologia e sim pela posição dele no sistema político. O deputado Jair Bolsonaro, por exemplo, tem muita ideologia, e muito à direita. Uma definição mais simples seria alguém que não participa da política institucional, como um empresário. É alguém que não faz parte da elite política. Podemos usar três definições. A primeira é alguém que não é profissional da política; outra definição é alguém que, mesmo sendo político, não faz parte da elite política, como Bolsonaro ou Daciolo, que fazem parte do baixo clero (como chamam no Congresso), e de repente ascendem; uma terceira definição é aquele que tem uma visão antissistema e antipolítica, que é o caso do Beppe Grillo, na Itália, que fez toda a sua campanha bem agressiva contra o sistema político. Cada analista vai usar uma definição diferente, e essa definição não é consensual. De qualquer forma, um outsider não é mainstream, não está entre os principais jogadores da política, não é protagonista. A política gira sempre em torno dos mesmos. A verdade é que Bolsonaro sempre esteve lá, fazendo um papel secundário, e de repente foi alçado. Marina foi senadora, foi candidata com força nas duas últimas eleições, ela não é outsider. Cabo Daciolo é uma novidade que veio do
baixo clero, cara nova da política. O Luciano Huck, por exemplo, se fosse candidato, seria um outsider 100 por cento. O empresário Antonio Ermírio de Moraes, quando saiu candidato, também era outsider, apesar de seu pai ter sido senador. Doria, na primeira eleição para a prefeitura, era um outsider.
CI — Outsiders sempre existiram. Então o que mudou nos últimos anos?
FG — Candidatos outsiders sempre existiram, mas o que mudou é que agora eles têm chances reais de chegar ao poder, no mundo todo. Por dois motivos essenciais. O primeiro motivo e a explicação mais simples é o descontentamento muito grande gerado pela política tradicional, que não tem dado solução aos problemas mundiais, como crise financeira, desemprego, imigração. O segundo motivo é que hoje existe uma divisão muito grande nas elites no mundo todo. Houve uma radicalização ao nível das elites, principalmente no campo da direita,
e não no nível da população. Nos EUA, isso é muito claro. Os irmãos bilionários Kock, donos de empresas de petróleo, mídia e outros ramos, estão financiando cada vez mais a extrema direita. Tudo indica que o Movimento do Brasil Livre (MBL) é bancado pelos Koch. Na Itália, o empresário do ramo editorial Gianroberto Casaleggio financiou o blog do Beppe Grillo desde o início.
CI — Por que parte dessas elites resolveu financiar a extrema direita?
FG — Para proteger cada vez mais seus interesses. A crise financeira de 2008 evidenciou o hiato existente entre o 1% e o resto da população. Lembremo-nos dos protestos “We are 99%” do Occupy Wall Street. Esse fato do 1% do mundo ditar as regras do jogo de um jeito muito ganancioso ficou evidente para boa parte da população, e houve reações para combater essa extrema desigualdade que estamos vivendo, como propostas de taxar grandes fortunas e instituir renda mínima. Tem outra classe média crescendo na China e na Índia, mas nos países desenvolvidos você tem o empobrecimento dos trabalhadores e da classe média; os jovens cada vez mais sem perspectiva de trabalho, como na Itália. Existe uma pressão pela distribuição de renda, e é claro que esse 1% vai reagir de forma contrária.
CI — A radicalização desses movimentos de parte das elites passa por medidas antidemocráticas no ocidente?
FG — A solução no final para a direita sempre vai ser a violência, pois, no voto, perde. A maioria, os 99%, representam o voto popular. E existe toda uma reação antidemocrática surgindo, inclusive um movimento nos EUA que questiona o direito ao voto para todos, levando à radicalização e à pulverização. Para entendermos o que está acontecendo, temos que olhar para essas elites, e compreender por que estão radicalizando e bancando candidatos que se afinam com elas. Isso está por trás de muita coisa.
CI — Como esse cenário se reflete no Brasil?
FG — Aqui você tem uma candidatura da esquerda forte, com o Lula, e outros da esquerda que gravitam em torno dele. Enquanto isso, a direita está quebrada desde sempre, nem tinha um candidato claro. Tem Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro, mas está todo mundo dividido. Quem está por trás deles? O agronegócio, a indústria paulista, uma indústria mais inovadora em torno da Marina, mas eles não conseguem se acertar. O lance do dinheiro de fazer a diferença está cada vez mais forte. Tem uma direita que acha que o PSDB não é tão antipetista assim,
e esse sentimento está levando ao Bolsonaro e a uma radicalização. O financiamento dos outsiders faz parte desse projeto. Os outsiders sempre existiram. Mas, para vencer, precisam de apoio financeiro. Sem financiamento, um outsider surge do nada e continuará no nada. Fica como Daciolo, com 1%, 2% de votos, até aparecer alguém que pensa: “vou financiar esse, que vai conseguir barrar o movimento popular”.
CI — O fenômeno antissistema do M5S na Itália tem paralelo no mundo?
FG — É um movimento que se coloca declaradamente como antissistema. Você não tem algo parecido nem na Europa. O sistema italiano, assim como o brasileiro, é muito fragmentado. O que espanta é o M5S obter 30% dos votos, é muito, e isso é inédito. Trata-se de uma votação expressiva e difícil de alcançar em poucos anos, desde que o Beppe Grillo começou a fazer o seu blog. Teve uma ascensão muito rápida. Ideologicamente você não sabe para onde vai, às vezes parece que vai para a direita. É curioso e imprevisível esse movimento. Não tem uma proposta clara, eles são do contra. É um fenômeno de certa forma único. Já a extrema-direita italiana sempre existiu, principalmente no Norte.
CI — Podemos dizer que a Lava Jato, assim como a operação Mani Pulite, abalou a confiança nos partidos e estimulou a ascensão de outsiders?
FG — A Mani Pulite teve um efeito na política italiana de arrasa-quarteirão, que quebrou todo o sistema partidário. No Brasil, isso não aconteceu, pelo menos ainda. Você tem aqui os mesmos partidos de antes, fortes, tirando o Bolsonaro. Abalou um pouco o PT em 2014, quando perdeu votos em São Paulo e Pernambuco, onde não fez coligações e saiu sozinho. No resto do Brasil, foi muito bem. Elegeu vários governadores no Nordeste, como Flavio Dino (MA) e Rui Costa (BA), que estão com chances enormes de reeleição. Não houve aquele baque, como na Itália, onde a Democracia Cristã teve que mudar de nome. O Partido Comunista foi abalado também por causa da queda do muro de Berlim.
CI — E o que vemos em comum entre as duas operações?
FG — O juiz Sergio Moro se inspira declaradamente na Mani Pulite. Ele toma aspectos da operação italianae os “reinterpreta”, como vazamento para a imprensa, prender personagens graúdos para dar exemplo, prisão coercitiva. As duas operações têm uma linha dura e um viés político; não são neutras. Mas o impacto na política foi diferente; na Itália foi mais forte, e surge o Berlusconi. Quando você tinha a Democracia Cristã unida com seu líder, não tinha tanta fragmentação nem pulverização. Um pouco disso aconteceu aqui depois do impeachment da Dilma. O deputado Eduardo Cunha foi lançado aos leões, avisou que vai levar outros com ele, e levou. Na direita, um tenta jogar a culpa no outro. Jogam Cunha e Aécio aos leões, e ninguém
segura a barra deles. Isso cria inimizades. Agora ficou difícil juntar todos para conversar. O que o Alckmin fez foi “genial”: conseguiu unir o “centrão” em torno dele, algo muito difícil naquele ambiente tão fragmentado. A Lava Jato e o impeachment na verdade enfraqueceram mais a direita do que a esquerda. O tiro da direita saiu pela culatra. Lula nunca esteve tão popular. Se tivessem ouvido o Aloysio Nunes (senador do PSDB), que disse “Não quero o impeachment, quero ver a Dilma sangrar”, teria dado certo e o Aécio Neves até ganharia a eleição.
Porém, deixaram o Eduardo Cunha comandar a tropa por inabilidade, falta de estratégia, covardia… O PSDB articulou o impeachment como uma bandeira antipetista, e o resultado foi um tiro no pé.
CI — Qual segundo turno o senhor vislumbra?
FG — Bolsonaro tende a cair. A taxa de rejeição dele cresce; ele não convence as mulheres nem as pessoas de renda mais baixa; seu tempo de televisão é inexistente. Acredito em um segundo turno entre PT e PSDB, pois Alckmin tem mais possibilidades de crescer. Acho que o eleitor será mais racional. Mesmo sem Lula no palanque, acredito que Haddad vai para o segundo turno, com o trabalho do PT associando a imagem dos dois. Muita gente diz que vota nele como bravata. Na hora H, pensam duas vezes e votam no Alckim. Quem quer protestar só por protestar vota no Daciolo.
CI — A direita fala em acabar com o Ministério do Trabalho, a esquerda em revogar a reforma trabalhista. O senhor acredita em tais medidas?
FG — Quem ganhar a eleição vai ter que enfrentar um déficit fiscal enorme e o problema da Previdência. Esses dois problemas estarão na pauta de quem assumir; não haverá como fugir. As reformas do governo Temer podem ser revistas, porém terão que ser revistas pelo Congresso, e eu duvido que o próximo Congresso seja muito diferente do atual. Dificilmente você terá mudanças muito fortes em qualquer área. Podem-se fazer emendas na reforma trabalhista, mas não reverter tudo. Apesar do Congresso não ser tão fã da reforma, não haverá uma mexida tão radical como a esquerda promete. Por outro lado, acho muito difícil de realizar a proposta da direita de acabar com o Ministério do Trabalho… Talvez só mudem o nome. O próximo governo não poderá nem ser nem tão desenvolvimentista nem tão liberal. Sobre baixar os juros, a questão é que cinco bancos dominam o mercado, sem concorrência. Até o Alckmin e o João Amoedo estão comentando sobre isso. É uma questão estrutural, uma concentração que não é normal. E os juros são uma consequência disso.
CI — Por que não podemos esperar uma renovação do Congresso nesta eleição?
FG — Agora não, pois todo o sistema, há anos, foi montado sobre o financiamento privado. Criaram o financiamento público, mas de um jeito que favorece os mesmos que eram favorecidos pelo privado. Quanto à internet, não sei se influenciará tanto. O Partido Novo, por exemplo, está fazendo toda a sua campanha pela internet. Vamos ver os resultados.
CI — O senhor tem observado alguma mudança no comportamento do brasileiro em relação à política?
FG — Em minhas últimas pesquisas, observei que o percentual da população brasileira que acredita na democracia como a melhor alternativa em relação às outras, tem caído, principalmente nos setores da classe média, apesar da maioria ainda acreditar. Quando a economia vai mal, as pessoas tendem a aceitar medidas mais autoritárias. Esse percentual aumenta principalmente entre os jovens brasileiros, que não viveram a ditadura militar. Eles tendem a aceitar mais as medidas autoritárias do que os mais velhos. Você observa isso pelo perfil do eleitorado do Bolsonaro, que é mais jovem.