“Nem adianta tentar vender para o Romani, que ele é muito exigente”. Essa é uma das reclamações que Ademir Romani está acostumado a ouvir de seus fornecedores. Fabricante de embutidos artesanais italianos em Mandirituba, região metropolitana de Curitiba, no Paraná, ele já conquistou clientes como o Grupo Fasano e o Copacabana Palace. Mas, para chegar a esse ponto, o “caminho da roça”, como ele mesmo gosta de definir, não foi fácil. Foram mais de dez anos de trajetória. Redirecionar o público-alvo e adaptar-se às normas brasileiras e ao
gosto do público local foram apenas algumas das “pedras” que precisou driblar. Porém, esse campo também lhe reservou searas férteis, entre elas, o apoio de profissionais como os renomados chefs Simone Brunelli, italiano que comanda restaurantes em São Paulo e Curitiba, e Claude Troisgros, francês que apresenta o programa culinário Que marravilha!, na GNT.
Para produzir peças ainda pouco conhecidas no Brasil, como o guanciale (bochecha suína), a soppressa (toucinho do lombo, sal, pimenta, alho e vinho branco seco) e a bresaola (único presunto italiano feito de carne bovina), as exigências de Romani começam bem antes do que muita gente pensa, como explica à Comunità:
— Na Itália, o peso dos animais chega a 170 quilos porque eles têm uma alimentação diferenciada, com muitas fibras, como o triticale (cereal que mistura trigo e centeio), aveia e cevada. Já o Brasil usa mais grãos como soja e milho. Essa diferença muda o resultado final. Por causa disso, pago mais caro pela carne ao fornecedor de Santa Catarina. Em troca, cobro que o animal tenha uma alimentação diferenciada, que vai me render uma carne mais firme. Essa firmeza para peças como o culatello (uma variedade de presunto cru) é fundamental — salienta
Romani não trabalha com carnes congeladas. Ele usa apenas animais recém-abatidos — cerca de duas toneladas por mês — além de aparelhos para medir o PH da carne. Porém, para ele, essas condições não precisariam ser exclusividade sua:
— Procedimentos como esses não teriam que ser só exigências minhas. Deveriam ser pré-requisitos cobrados também pelos órgãos fiscalizadores e entidades competentes a todos os produtores do setor — dispara.
A fiscalização, aliás, faz parte de um dos testes de fogo pelos quais Romani teve que passar para produzir no Brasil: ele foi obrigado a mudar uma de suas obras mais recentes — a sala subterrânea de stagionatura (espaço para os embutidos curtirem o tempero). O local tinha arquitetura fiel aos modelos italianos. Porém, precisou ser reformado:
— Realizei meu sonho de construir com tijolos à vista, exatamente igual à Itália, mas durou pouco tempo. A fiscalização brasileira disse que não era permitido, e tive que cobrir tudo com concreto. Foi frustrante — lamenta-se.
O novo espaço trabalhará com capacidade para 30 toneladas de carne. A temperatura de 15 graus será mantida quase naturalmente, recorrendo a equipamentos apenas para mantê-la constante. Os estaleiros de salame também precisaram ser modificados: em vez de usar material de madeira, como na Itália, tiveram que ser construídos em metal. Mas, se foi impossível manter a tradição italiana na nova sala de stagionatura e nos estaleiros, o mesmo não aconteceu com as técnicas para produção dos embutidos, que seguem rigorosamente as lições que Romani aprendeu em suas incursões pelo país de origem.
Uma das técnicas mais antigas envolve o processo de secagem das carnes, que ficam enxugando por pelo menos um dia, antes de começarem a ser trabalhadas. Os temperos usados
para condimentá-las (pimenta, cravo, louro, canela) também têm um segredinho especial: nada de produtos em pó, somente grãos moídos na hora:
— Não confio no tempero em pó. Imagina o que misturam ali? Os grãos custam o dobro, mas o que interessa é chegar ao resultado que busco — afirma, convicto.
Os produtos curtem tempero durante cerca de 20 dias, a dois graus de temperatura. Cada carne é massageada à mão quase todos os dias, sem máquinas nem injeção de temperos adicionais:
— Por isso, não posso e nem quero produzir em larga escala. Fazer o mesmo que todos já fazem não é meu negócio — observa.
Produção no Brasil exige uma série de adaptações, persistência e paciência
Para fazer tudo isso, a salumeria conta com uma equipe fixa de pouquíssimas pessoas, incluindo Ademir, Wanilda Romani (a esposa) e as duas filhas. O resto é terceirizado. O dia de
trabalho do casal é longo.
Quando terminam as operações na produção, os dois vão organizar documentos e registros na parte administrativa:
— Fazemos barba, cabelo e bigode — brinca Wanilda.
Mas não são todas as pessoas que se adaptam a esse ritmo de trabalho, conforme explica Romani:
— Primeiro preciso conscientizar os funcionários de que, se todos os procedimentos não forem rigidamente seguidos, não chegaremos ao resultado esperado — afirma.
E o perfil para trabalhar com embutidos artesanais também não é tão simples assim. O profissional precisa ser metódico, desossar a carne com critério e delicadeza, seguindo a anatomia do animal, para não fazer buracos. E o mais importante: Romani lembra que tudo deve ser feito sem pressa, bradando o mantra que aprendeu com seus mestres: “Per fare un prodotto buono e sano, bisogna non avere fretta” (Para fazer um produto bom e saudável, é preciso não ter pressa), repete para seus ajudantes.
Para dar conta de tantos detalhes, a equipe precisa ser boa mesmo. Grande parte do trabalho consiste em adaptar a produção da Itália para o Brasil. Além de adequar-se à fiscalização e à estrutura física do espaço, é preciso estar atento a itens como a diferença climática e o perfil do público brasileiro:
— Tivemos que adaptar a finocchiona no Brasil (salame que leva um tipo de erva-doce selvagem na preparação), devido à preferência do público. Na Itália, é uma peça mais gordurosa. Por aqui, tive que tirar um pouco porque os brasileiros não gostam. Também temos que tomar cuidado com a questão do clima: na Itália, é frio e seco; no Brasil, aqui no Paraná, é frio e úmido.
Contudo, superar as diferenças climáticas parece ser bem mais fácil do que se entender com os departamentos burocrático e tributário do setor:
— A burocracia de inspeção e os impostos são os mesmos para grandes e pequenas empresas. É difícil porque não tenho a mesma estrutura e o número de funcionários de uma grande empresa. A fiscalização poderia ser simplificada para pequenos produtores, proporcional às condições das quais dispomos — sugere Romani.
Tanto sacrifício começou a chamar a atenção de chefs de cozinha, como o romagnolo Simone Brunelli, que comanda os restaurantes Terra Madre Osteria, em São Paulo, e o Terra Madre Ristorante, em Curitiba. Em São Paulo, a pancetta (barriga do porco), o salame e a copa de Romani integram abases de molho, risotto de codorna com zucca e chips de pancetta:
— Conheci o trabalho do Ademir por intermédio do chef Ivan Lopes, do restaurante Moqueca, que é meu amigo. Ele queria conhecer melhor a salumeria e me convidou para irmos juntos. Fiquei encantado porque, apesar de tantas dificuldades, ele consegue fazer um produto muito bom. É apaixonado pelo que faz, e todas as coisas que são feitas com amor. No final, têm um bom resultado — afirma.
Qualidade da matéria prima e aprendizado na Itália foram decisivos para a produção deslanchar
Romani valoriza o papel dos chefs de cozinha para o prosseguimento de seu trabalho e observa que essa importância é recíproca. Ele se recorda que já conheceu muitos italianos (proprietários e chefs de restaurante), cuja queixa mais frequente era a dificuldade para lidar com a diferença da matéria-prima que encontravam no Brasil, comparada àquela da Europa. O chef Brunelli reconhece que a questão é delicada,mas acha que um profissional criativo precisa saber contornar a situação, exercitando o paladar e os próprios sentidos em situações como essa. Neste contexto, ressalta que a excelência de produtos como os embutidos artesanais é uma parte fundamental na divulgação do que considera a “autêntica culinária italiana”.
— Não estamos falando de uma questão que “está na moda”, mas de um compromisso sério com a comida que servimos, com a cultura gastronômica de um país. Se dependermos de outras marcas, como aquelas mais comerciais que vendem em grande quantidade, fica complicado. Não tem nada a ver com o que é produzido na Itália.
E era mesmo com um chef de cozinha que viria a grande guinada na carreira de Ademir Romani, mais precisamente em 2015, quando conheceu o francês Claude Troisgros. Naquele ano, Romani participou do Salão Internacional de Restaurantes, Hotelaria e Alimentação (Sirha), no Rio de Janeiro, onde conheceu o famoso chef:
— Foi um momento incrível. Ele me deu grande apoio e ajudou a divulgar meus produtos para outros profissionais — celebra.
Porém, bem antes disso, precisou jogar muita carne fora:
— Tive de dar os primeiros lotes de pancetta para os cachorros — diverte-se.
No começo, tentava se inspirar nas recordações de infância com o pai, que criava porcos e produzia salames no porão de casa, em Capinzal, no oeste de Santa Catarina. Mas ele percebeu que apenas isso não seria suficiente para um negócio maior. Além disso, o público ainda não conhecia muito bem peças como pancetta e presunto cru:
— Perguntavam se era bacon — recorda-se.
Em 2001, Romani conheceu um italiano de Treviso em Bombinhas (SC). O amigo o levou para a Itália e o apresentou a pequenos produtores artesanais de embutidos:
— O mais difícil foi a gente se comunicar porque eu não falava italiano. Eu devia ter aprendido quando era criança, com a minha mãe, que nasceu na Sardenha — arrepende-se.
Engano com o público-alvo gerou perdas, mas ajudou a conquistar o sucesso
Depois do pontapé inicial, juntou suas economias e, em 2005, comprou o terreno de 17 mil metros quadrados onde produz hoje, no Paraná. Voltou à Itália no mesmo ano para cursos de aperfeiçoamento em Valdobiadenne, Cremona e Bolzano. Mas, as coisas só engrenaram mesmo cerca de quatro anos atrás:
— Nosso público-alvo estava errado. Vendíamos em supermercados, para o consumidor final, e as grandes marcas nos engoliam. Eles têm promotores para manter o produto em evidência. Ás vezes, eu chegava lá, e meus embutidos estavam escondidos no fundo da gôndola frigorífera. Demoramos muito para perceber esse engano, com lucro quase zero. Trabalhávamos
mesmo porque acreditávamos que ainda ia dar certo — orgulha-se.
Sua viagem mais recente foi no ano passado para visitar outras propriedades ao redor de Treviso. Conheceu famílias que produzem apenas para consumo próprio e pequenas empresas que fabricam e comercializam o produto em macelleria (casa de carnes). Hoje, a salumeria Romani não vende quase nada no estado paranense. Obteve autorização do Serviço de Inspeção Federal (SIF) e passou a fornecer para todo o Brasil. Peças de speck (presunto cru defumado), pancetta e bresaola são o carro-chefe da produção, sendo a bresaola o item mais caro de sua linha, a R$ 106/kg. Normalmente, vende sob encomenda, principalmente para hotéis, casas de eventos e restaurantes badalados como o Fasano e o Copacabana Palace.
Mas os reles mortais também podem levar para casa algumas gramas do produto (ou mais) no Mercado Municipal de Curitiba, onde a loja Bom Vivant fatia na hora peças de guanciale e soppressa.
Agora que pegou gosto pela coisa, o empresário não quer mais parar, desta vez, produzindo sua própria polenta:
— Estamos trabalhando na construção de um moinho de pedra atrás de casa. Quero moer o milho e fazer polenta como aprendi na Itália. Mas, por enquanto, é só para a família — avisa.
Romani é uma dessas pessoas que gostariam de que o dia tivesse mais de 24 horas para realizar tudo o que sua intrépida mente não para de processar. Resignado, ele não nega sua condição, sempre buscando mais tempo para multiplicar suas conquistas:
— Viver só uma vida é muito pouco, né? — pergunta, com um sorriso maroto.
Serviço
Salumeria Romani
Av. das Indústrias, 1100, Ciman, Mandirituba (PR)
Tel.: (41) 3626-2816 /3626-1794
Terra Madre Osteria
Rua Professor Tamandaré de Toledo, 51, Itaim Bibi, São Paulo (SP)
Tel.: (11) 3078-6442
Bom Vivant
(Mercado Municipal de Curitiba) Av. Sete de Setembro, 1865, Box 56/57, Centro, Curitiba (PR)
Tel.: (41) 3013-7753