De seus 15 metros de altura, um jovem e atraente San Genaro, patrono de Nápoles, olha com um gesto mais próprio de um catálogo de moda do que de uma pintura religiosa. É a obra do artista urbano Jorit, um criador que através de murais gigantes e super-realistas (também é seu o mural do outro santo de Nápoles, Maradona) colocou a arte moderna nas ruas de uma cidade ancorada no passado. Isso é Nápoles, aferrada a sua história e sua tradição, mas também ao seu caos e sua sujeira, como se seus vícios e suas virtudes fosses os dois lados de uma mesma moeda.
Daria para ficar muito mais tempo aqui, se alimentando de pizzas tão simples como deliciosas – com tomate, mozzarella e manjericão como únicos ingredientes -, mas dessa vez Nápoles não é o destino e sim a porta de entrada de outra viagem em direção à Costa Amalfitana.
Costa de Amalfi
Para essa road trip escolhemos um Fiat 500. Além da nostalgia, existem razões práticas para escolher o mais evocador e menor dos carros italianos. Pela frente nos espera a famosa estrada SS163 de Sorrento a Salerno, abraçando penhascos a 40 metros de altura, sinuosa e estreita, quase sem espaço para um veículo, mas dividida com centenas de carros e ônibus. Infelizmente, essa saturação de veículos, até mesmo fora de temporada, faz com que os 43 quilômetros dessa esperada viagem romântica por uma das estadas costeiras mais bonitas do planeta se transformem em um grande engarrafamento com vistas. Decidimos pernoitar em Sorrento e transformar essa cidade em base de operações de onde explorar os povoados da costa. Povoados como Positano, aferrados de forma impossível à montanha, construído em plano vertical em vez de horizontal e salpicado de casas de cores e igrejas de cúpulas douradas.
Lugar mágico que inspirou Patricia High-smith a escrever em 1955 O Talentoso Ripley, levado ao cinema com Jude Law encarnando o perfeito hedonista italiano. Um lindo povoado que seduziu músicos e intelectuais e que hoje seduz milhares de instagramers. Seu encanto é indubitável, mas sua magia se desvanece um pouco com cada ônibus e barco carregado de turistas que atraca em seu porto. Somente ao cair da tarde Positano começa a respirar. Também em Amalfi as lojas de lembranças e os restaurantes turísticos substituíram os comércios locais e as trattorias de bairro há muito tempo.
Um pouco mais adiante se encontra Atrani, um povoado pequeno, mas com uma alta densidade de igrejas, monastérios e capelas por metro quadrado. A estrada costeira delimita o povoado e se aperta aos muros da colegiata de Santa Maria Maddalena em uma curva que é mais um abraço e que leva ao interior por uma ziguezagueante rota pelo vale do Dragone entre olivares até chegar a Ravello.
Ravello
Sem a atração do mar e cercado de montanhas, Ravello é hoje o último baluarte da Riviera Napolitana, o lugar onde vive a cultura e onde ainda é possível respirar o mesmo ar refinado que conquistou Wagner quando encontrou em Villa Rufolo a calma que procurava para compor. Esse mesmo lugar é o cenário do Festival de Música de Ravello, um dos mais importantes da Itália. Wagner não foi o único. A lista de escritores e artistas que encontraram aqui seu lugar no mundo é tão longa quanto ilustre: Turner, Miró, Graham Greene, Tennessee Williams, Alberti… Foi em Ravello que D. H. Lawrence escreveu O Amante de Lady Chatterley, e também aqui, atrás dos muros cobertos de hera de Villa Cimbrone, em que outros amantes, Greta Garbo e Leopold Stokowski, viveram um tórrido caso. Passeando pelo coquetel de estilos, épocas e culturas, entre estátuas, fontes e jardins em Villa Cimbrone é fácil submergir no glamour daquela época. De seu impressionante mirante infinito ladeado por bustos neoclássicos, você se perde em um horizonte que Gore Vidal definiu como “a vista mais bela do mundo”.
Paestum
Seguindo o caminho rumo ao sul, deixando as montanhas para trás, avançamos sem perder o mar de vista. Próxima parada: Paestum, um complexo arqueológico onde está um dos templos mais belos da antiga Grécia. As proporções perfeitas do templo de Hera inspiraram o arquiteto francês Jacques-Germain Soufflot para criar o Panteão de Paris, bandeira do neoclássico que cativou a Europa. Aqui é possível andar entre colunas dóricas, tocar a pedra e sentir o peso e a passagem da história em seus pilares polidos por séculos de vento. De uma pequena basílica romana próxima saem gritos de Evviva gli sposi! Por seu pórtico aparece um casal recém-casado rumo ao recinto arqueológico para tirar as fotos das bodas diante do templo de Hera, a deusa grega protetora do casamento.
Antes de deixar a região da Campania, uma parada em Barlotti, uma das fazendas de búfalas de onde provavelmente sai a melhor mozzarella do mundo. É possível comê-la crua, assada, devorar um hambúrguer de búfala, tomar um sorvete de mozzarella e até hidratar a pele com creme de leite de búfala. Sentado no terraço do restaurante, diante de um prato com uma bola branquíssima de meio quilo, observamos dezenas de búfalas em seus currais.
Matera
Agora sim, de barriga cheia, o caminho segue ao interior, em direção à região de Basilicata, até uma das mais belas e misteriosas cidades da Itália. Depois de duas horas e meia de viagem, aparece à distância o perfil de pedra de Matera. Nada prepara você para essa primeira impressão quando, após caminhar por suas estreitas ruas de empedradas, aparece um vale de casas escavadas em uma rocha vulcânica. Telhados que são os solos de outras casas construídas sobre elas em um amálgama de cavernas e casas monocromáticas que faz com que a cidade pareça um gigantesco presépio de papelão, que lembra os que são vendidos na rua das manjedouras de Nápoles. Nos dias seguintes aqui se sucederam entardeceres de um vermelho irreal, tempestades furiosas precedidas de nuvens negras e até um arco-íris duplo surgido das profundezas da ravina de La Gravina, como se o impacto dramático dessa cidade por si só não fosse suficiente e tivesse que utilizar efeitos especiais meteorológicos.
A sensação de estar em um local primitivo se constata ao averiguar que se trata da cidade mais antiga da Itália, local habitado desde o Paleolítico nas grutas calcárias que ainda existem hoje. A partir dessas cavernas e ao longo dos séculos outras foram sendo escavadas e construindo casas, igrejas e corredores subterrâneos que deram forma ao complexo entrelaçado urbano atual dessa fascinante cidade. Muitas das antigas sassis (cavernas moradias) se transformaram em restaurantes e hotéis chiques como o Ai Maestri, onde as paredes do quarto se ajustam às formas arredondadas da gruta original escavada na pedra vulcânica. Próxima capital europeia da cultura em 2019, a dona do hotel conta como era praticamente um povoado abandonado há somente duas décadas. A filmagem de A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, operou o milagre, a tornou conhecida mundialmente e acelerou sua reabilitação. Cenário cinematográfico de outros filmes como Rei Davi (1985) e O Evangelho Segundo São Mateus (1964), a cidade acentua suas credenciais de estúdio quando ao cair da noite é iluminada com a luz ocre e tênue dos postes de luz que a pontilham. Durante o dia existe o circuito de íntimas capelas rupestres com afrescos bizantinos, os palácios e museus barrocos da Via del Corso na parte moderna de Matera e as ruas labirínticas no antigo bairro do Sasso Caveoso.
A 10 quilômetros de Matera está a chamada capela sistina da arte rupestre, com seus afrescos do século XIII recém restaurados e aberta ao público há somente dois anos.
Pompeia
Com a cabeça ainda cheia das imagens da assombrosa Matera, é hora de voltar a Nápoles para pegar o avião de volta. De passagem, uma parada no tempo na cidade adormecida de Pompeia. Passar por suas ruas, praças e casas conservadas intactas sob as cinzas do Vesúvio no ano 79 depois de Cristo é uma experiência impressionante, uma janela única para ver a história.
Procida
Os últimos dias dessa viagem pela Itália apuram os raios de sol outonal junto às águas claras do Tirreno. Três ilhas ao lado de Nápoles e tempo só para uma. Capri é a menina bonita, arrebatadora e glamorosa, refúgio de poetas e local de recreação do jet set. “O lar das sereias”, como dizia Homero, é hoje parada obrigatória de turistas que tentam agarrar a dolce vitta em excursões de um dia. A segunda ilha, Isquia, a maior do golfo de Nápoles, com suas águas termais de suas entranhas vulcânicas, é hoje uma ilha balneário. Fiel ao roteiro em procura do autêntico, a escolha é Procida, a irmã menor das ilhas napolitanas, modesta e humilde e por isso mais verdadeira, tão discreta e quieta, como o inesquecível personagem do carteiro do filme O Carteiro e o Poeta (1994), filmado aqui.
Chegando à varanda do quarto em La Casa Sul Mare, fica-se hipnotizado contemplando as fachadas de cor bege no velho porto de Corricella. As pequenas casas, construídas de forma espontânea uma sobre as outras, lembram os quadros geométricos de Paul Klee. Poderia ter sido aqui o local em que o pintor experimentou sua epifania com a cor (“A cor me domina. Não preciso ir em busca dela. Me possui, eu e a cor somos um”). O sol do entardecer aumenta ainda mais a intensidade dos tons. A melancolia é o envoltório de uma ilha que nunca cresceu (tem os mesmos habitantes, 10.000, que há meio século) e que por alguma inexplicável e feliz razão evitou o turismo de massa. Nos pomares familiares continuam cultivando limões que acabarão macerados em garrafas de limoncello, e no porto de Marina Corricella os pescadores remendam suas redes todos os dias. Aqui, boias, amarras e redes emaranhadas dividem o cais com os terraços dos restaurantes onde são servidas as anchovas, a lula e o polipetti pescados nessa noite.
Com uma bicicleta elétrica, pode-se percorrer a pequena, mas escarpada ilha e se perder por suas estreitas vias entre limoeiros e triciclos que te ultrapassam impacientes a toques de buzina. A ilha é cercada de praias estreitas de areia negra, vulcânica, e de águas tão cristalinas como as de Capri, ainda que sem a tonalidade turquesa de seu mar. Nessa ilha de povoado, o cemitério é a referência para se chegar à praia de Pozzovecchio, lugar onde o carteiro de O Carteiro e o Poetadescobre através de Neruda o que é uma metáfora. No coração da ilha, a 90 metros de altura sobre os penhascos, se levanta a Terra Murata, o velho centro histórico amuralhado de Procida, local de refúgio contra os sarracenos. Um medo antigo que ainda se respira no Palazzo d’Avalos – transformado em prisão e hoje abandonado – e nas inquietantes catacumbas da abadia de San Michele Arcangelo. Felizmente, essa sensação de ligeira claustrofobia se dissipa na chegada ao mirante da abadia com suas impressionantes vistas do golfo de Nápoles.
Seguindo no horizonte a esteira de um barco que navega pelo Tirreno, se escutam fogos de artifício vindos da Marina Grande. A razão do alvoroço: as relíquias de um santo acabam de chegar de barco de Nápoles para ficar na igreja de Santa Maria dela Pietà. Todo o povoado se amontoa na igreja para receber com pompa os ossos de tão ilustre novo habitante. O tempo parece ter parado nessa maravilhosa ilha que apesar de suas cores de Instagram ainda é capaz de presentear momentos em preto e branco.
(EL PAÍS)