A tradição da liquefação do sangue é um dos mitos fundadores da cidade de Nápoles, que passa por difícil momento político e social
{mosimage}Com 24 horas de atraso do dia previsto, no último dia 1° de maio pela manhã, diante de uma catedral lotada de fiéis, se repetiu mais uma vez em Nápoles o milagre da liquefação do sangue do santo patrono da cidade, San Gennaro, tranquilizando os napolitanos, já que prega a tradição que a ocorrência do fenômeno é sinal de bom augúrio à cidade, protegendo-a de grandes tragédias. No entanto, o atraso verificado não é visto como algo positivo, podendo significar mais desgraças à vista, para uma das cidades mais problemáticas da Itália. Na última vez que o sangue não liquidificou, em 1980, um grande terremoto devastou a região, deixando mais de três mil mortos e milhares de desabrigados.
— O milagre de San Gennaro é fundamental para a cidade de Nápoles. Se não acontece nas datas previstas, é sinal de infortúnio e os resultados podem ser catastróficos do ponto de vista social — explica o antropólogo napolitano Aldo Colluciello, acrescentando que, como cientista social, nunca se colocou o problema se a liquefação do sangue é real ou não. — O mais importante é o fenômeno social — salienta.
Segundo a tradição, a liquefação do sangue do santo, conservado em duas ampolas de vidro dentro da Catedral de Nápoles, ocorre duas vezes por ano, uma no sábado que antecede o primeiro domingo de maio e outra no dia 19 de setembro, aniversário da decapitação de Gennaro, que ocorreu no ano 305 d.C. em Pozzuoli durante a perseguição aos cristãos pelo imperador Diocleciano. A história da vida de Gennaro, bispo da cidade de Benevento no século III, é marcada por contradições e versões diversas. No entanto, sabe-se que uma mulher teria recolhido o sangue do mártir, como era comum na época, logo após sua morte e muitos anos depois teria entregue as ampolas ao bispo local. Registros da Igreja reiteram que a veneração ao santo, muito amado em vida por católicos e pagãos, começou neste período, mas apenas no século XV seu corpo e suas relíquias voltaram definitivamente para Nápoles. É deste período também o primeiro registro de ocorrência do milagre da liquefação do sangue, ponto central do culto ao santo.
As datas da ocorrência do milagre são celebradas com grande expectativa pelos fiéis, que comparecem em peso à Catedral de Nápoles para certificarem-se do milagre. Com as relíquias expostas ao público, os fiéis acompanham o processo e se a liquefação não se verifica imediatamente, iniciam-se preces e vigílias coletivas. Quando o milagre ocorre, a celebração se encerra com cantos sacros e os sinos da catedral soam, avisando a cidade. Este ano as ampolas com o sangue do santo foram expostas por três vezes aos fiéis, até que, com quase 24 horas de atraso, o sangue finalmente se liquefez, sob aplausos e comoção dos milhares de fiéis presentes na Igreja, entre eles autoridades locais e nacionais, como a prefeita da cidade, Rosa Iervolino.
Diversas pesquisas científicas realizadas ao longo dos séculos tentaram comprovar a falsidade do milagre, tanto que nos anos 60 o Vaticano reconsiderou a canonização de San Gennaro e qualificou o milagre como uma “crença da religosidade popular local”, já que era impossível determinar a inexplicabilidade científica do fenômeno, pré-requisito fundamental para um fato ser considerado milagre. No entanto, até hoje nenhum cientista explicou como o fenômeno se repete sempre nas mesmas datas. “Nunca ocorreu uma real apuração do conteúdo das ampolas”, explica Collucciello.
— Nápoles é uma cidade única na Itália, é a única capital onde ainda ocorrem estes fenômenos de religiosidade popular, sendo San Gennaro apenas o maior e mais popular deles — explica o antropólogo, reiterando que este milagre é um dos mitos fundadores da cidade.
Em Nápoles, segundo o professor da Academia de Belas Artes, crenças pré-católicas se misturam com a religiosidade cristã, em modo similar a como ocorre no Brasil.
Segundo Collucciello, em períodos de crise social, como agora, com a crise econômica e a crise do lixo que já se estende há vários anos, aumenta a devoção popular ao santo.