“Venha. É por aqui. Quero mostrar a vista que tenho do terraço. Você não vai acreditar”. Marco D’Auria abre a grande porta de vidro, que deixa entrar uma intensa luz no amplo apartamento. O frio pungente e seco do inverno milanês atinge o rosto mais rapidamente do que a vista que, apesar da humanização do espaço em volta, mantém algo intacto da beleza natural da planura Padânia e do norte da Itália. Marco está muito feliz com o seu novo imóvel que pintou na vida dele quase por acaso, mas que é parte de um projeto bem pensado, planificado e com um futuro promissor. Estamos falando do “social housing”, o novo conceito de moradia que abre mudanças não só na urbanística das cidades, mas, sobretudo, no comportamento dos cidadãos. A situação de emergência do setor de moradia é uma realidade na Itália. As vendas no mercado imobiliário despencaram por causa da crise econômica que pontualmente chegou depois de um efêmero boom consumidor. Os imóveis construídos ficaram vazios à espera de um comprador cada vez mais remoto. O abismo do desemprego — especialmente o juvenil que alcança 40% da população — deixa cada vez mais uma marca no inconsciente coletivo da sociedade italiana. A crise atingiu a auto-estima de jovens adultos, os quais ficam na casa dos pais por não terem acesso ao mercado do trabalho e da moradia. São cada vez mais os casais, as famílias, as pessoas solteiras, os idosos e os imigrantes que necessitam de habitação. Eles lutam para encontrar uma casa compatível com os próprios contratos de trabalho temporários ou com as aposentadorias muito reduzidas. Segundo a Comunidade Europeia, os problemas habitacionais na Itália, entre superlotações e moradias de baixa qualidade, alcança uma percentagem igual a 7,3% em relação à média da Europa ocidental, que é de 2,5%. Neste contexto, se entende a proposta do social housing como vencedora. Isso porque mira dar um lugar aos chamados destinatários da “zona cinzenta da sociedade italiana”, aqueles que não conseguem entrar no mercado de compra e venda dos imóveis — e nem da habitação social por não serem suficientemente “pobres”. Marco viveu em Roma, mas há anos se mudou para Milão, onde trabalha como repórter para uma agência de notícias.
É separado e anda o dia inteiro para manter dois filhos e ele mesmo, sem perder a paixão e a curiosidade que tem pela vida.
— Nunca teria tido a possibilidade de comprar um apartamento. Um querido amigo me emprestou 20 mil euros para poder dar entrada no contrato de aluguel, mas depois de oito anos tenho o direto de comprar o imóvel por um preço razoável, não pesado para a minha vida. Gosto daqui. Além de tudo, para mim, o estilo de vida proposto do social housing é perfeito — afirma Marco, mostrando o complexo residencial Cenni di Cambiamento, no bairro de Figino, na Rua Cenni, em Milão.
Prédios sem o aspecto frio de “habitação popular”, com tecnologia de ponta e estrutura em madeira
O complexo arquitetônico não apresenta um aspecto popular. Os prédios foram projetados para todas as classes sociais, as quais têm o direto de viver em um ambiente aconchegante e bonito. O projeto a oeste da cidade de Milão conta com um total de 123 apartamentos oferecidos em aluguel, com pacto de futura venda ou de aluguel a preços justos, e propõem uma solução de moradia inovadora, baseada na cultura da moradia sustentável e colaborativa. O projeto apresenta tecnologias de construção de ponta que permitem alcançar para cada apartamento uma elevada qualidade arquitetônica com baixa necessidade energética, com consequente redução das emissões de CO2. Cenni é considerado o maior conjunto residencial da Europa que utiliza um sistema de estrutura em madeira.
O projeto, junto aqueles situados na rua Ferrari e em Crema, é o exemplo mais representativo deste tipo de moradia que dá os primeiros passos — ao contrário do Norte da Europa. O caminho é diferente da lógica imediatista do capital que, afastando-se cada vez mais do crédito direto para a produtividade econômica, não está mais a serviço do desenvolvimento social e econômico de um povo. Obter acesso aos fundos éticos para moradia é a chave para um projeto de housing social sair da planta.
A Polaris Investment Italia Sgr, que administra o fundo imobiliário social que deu vida ao complexo residencial na Rua Cenni, é um dos gestores de tais fundos éticos. Um mapeamento dos projetos de housing social foi feito em 2011, quando na Itália foram encontrados 213 órgãos localizados em Basilicata, Emília-Romanha, Lácio, Ligúria, Lombardia, Marche, Molise, Piemonte, Toscana, Trentino Alto-Ádige, Úmbria e Vêneto. Sem dúvida, o principal pivô é o banco Cassa Depositi e Prestiti que, junto a Acri e Abi, formou a sociedade Cdp Investimenti Sgr, que desde 2010 administra Il Fondo Investimenti per l’Abitare (Fia). A Polaris Investments é uma iniciativa nascida do fundo imobiliário ético Abitare Sociale 1 que, por sua vez, tem as suas raízes na Fundação Housing Sociale (Fhs), constituída em 2004 sob a iniciativa da Fundação Cariplo, suporte da Região Lombardia, Anci Lombardia e outros investidores (como Intesa San Paolo, Banca Popolare di Milano, Assicurazioni Generali, Cassa Italiana Geometri, Prelios e Telecom Italia, além da prefeitura de Milão). A Fhs opera em todo o território nacional, promovendo e dando o pontapé a iniciativas de housing social desenvolvidas e administradas por operadores especializadas, como a Polaris, e colabora ativamente com o Cdpi, mas trabalha também junto com fundações de origem bancária ativas no setor de moradia social e outros protagonistas das cooperativas de moradia e construção civil.
— Mas por que você não entrevista Roberta Conditi? Ela trabalha exatamente para a Fhs. Eu a conheço. Se você quiser, vou avisá-la de que vai passar mais tarde no escritório para entrevistá-la — sugere-me de repente Marco, ao se preparar para sair de casa e entregar-me uma cópia da chave do novo apartamento.
A sede da Fundação Housing Social se encontra em um belo edifício histórico próximo ao santuário de Santa Maria delle Grazie, que abriga “A última ceia”, o afresco de Leonardo da Vinci. Roberta, uma jovem especialista umbra, me espera em uma sala luminosa.
— Sim. Marco mora em uma casa com contrato de futura venda. Nos primeiros anos, os moradores pagam um aluguel justo e serão seguidos pela cooperativa “Cenni di Cambiamento”, que ajuda a resolver os problemas no complexo residencial e indica o caminho pela autogestão — explica Conditi, que estudou design gráfico, mais uma especialização no Erasmus e se apaixonou pelo housing social, com o qual ela também se identifica como filosofia de vida.
Na longa entrevista, Roberta dá detalhes do projeto realmente extraordinário, pois como é possível o capital conciliar lucro financeiro justo e no mesmo tempo satisfazer uma necessidade humana de moradia. A finalidade central do fundo ético é mais do que nunca válida. Com as dificuldades de acesso ao mercado da casa, os bancos públicos e privados começaram a se interessar pelo housing social como caminho para alcançar o novo tipo de mercado imobiliário formado por um crescente número de cidadãos da classe média, a qual assistiu a cada dia à perda do seu poder aquisitivo nos últimos anos.
— Cenni é para pessoas que querem se colocar em jogo na vida — afirma Conditi, explicando como o projeto é direcionado principalmente para os jovens que querem construir algo morando juntos. A italiana explica como os apartamentos são atribuídos às várias categorias de pessoas física e jurídica, como cooperativas, que trabalham com jovens com problemas de integração social, mulheres, refugiados políticos e imigrantes. Todos juntos, criando uma verdadeira democracia popular participativa.
— A Fhs para os seus projetos se inspira na ideologia do housing social francês. Desejamos também mudar algo na estrutura econômica do país, pois queremos incentivar os jovens a saírem da casa dos pais. Esta é uma condição que cria mais um consumidor passivo do que um indivíduo com iniciativa e motivação para abrir atividades transformadoras na economia e na sociedade — declara Roberta.
Cenni, um cortiço chique que poderia dar certo no Brasil
Durante a entrevista, logo pensei que o projeto do housing social poderia realmente encaixar bem no Brasil, onde existe a peculiar cultura dos cortiços e das favelas, onde existe uma grande solidariedade entre os moradores, especialmente entre as mulheres, que se ajudam entre si para resolver problemas práticos da vida, como deixar o próprio filho na casa da vizinha enquanto uma trabalha; ou alugar o nome de um avô, um parente aposentado para o vizinho que precisa obter um crédito para financiar a compra de um eletrodoméstico.
— Cenni seria um cortiço chique — responde, sorrindo, Roberta, que fica interessada na ideia de um projeto mobiliar parecido, desenvolvido no Brasil. Explico para Roberta da existência do BNDES, um poderoso instrumento financeiro público que poderia facilmente financiar uma moradia social participativa no país. Os cortiços europeus foram durante a Revolução Industrial o lugar onde se espalhou a ideologia do comunismo e se desenvolveram os movimentos sociais mais importantes que deram origem aos sindicatos. Foi naqueles lugares pobres que se organizou, pela primeira vez, a luta pelos direitos da classe trabalhadora, explorada cruelmente nas minas de carvão da Bélgica e nas fábricas inglesas, franceses, alemãs e italianas. Parte daqueles trabalhadores, que incluía muitos anarquistas e comunistas, emigrou para o Brasil, onde foi morar nos cortiços juntos com os ex- escravos libertados após a Abolição. A arquiteta Jane Santucci conta no livro Cidade Rebelde – As Revoltas Populares do Rio de Janeiro no Início do Século XX, que quatro mil pessoas chegaram a viver no Cabeça de Porco, o maior cortiço da história do Rio de Janeiro, onde se instalaram também os imigrantes trazendo consigo a cultura sindicalista europeia. O então prefeito Pereira Passos foi chamado para demolir os cortiços cariocas, não só para dar uma nova cara urbana à capital federal, mas também para apagar qualquer movimento subversivo na cidade e na estrutura social ainda colonial. Roberta fica curiosa com a história dos cortiços brasileiros e com a força do trabalho informal que abre verdadeiras atividades econômicas nas favelas.
— Parte dos espaços criados nos prédios da Rua Cenni prevê também o desenvolvimento de atividades comerciais administradas pelos moradores, como padarias e mesmo bares e restaurantes — revela Roberta, acrescentando que o projeto tem uma relação com o bairro, que precisa desenvolver alguns tipos de serviços.
Na Cenni, nada é obrigatório. É um complexo residencial que não tem condomínios, mas assembleias. Não existem administradores, porteiros, câmeras, arame farpado — e sim, quadras esportivas e um grande desejo de mudar a vida. Tudo é aberto. Os moradores se chamam pelo nome e são eles que administram o complexo imobiliário junto com a cooperativa Cenni. Além de ter os próprios apartamentos, os moradores dividem espaços em comum onde as pessoas se encontram também para fazer cursos, conversar, cozinhar, estudar, ler e curtir a vida juntos. Cada um coloca livremente a própria profissão à disposição dos outros para trocar serviços e resolver problemas de casa entre os moradores, os quais, dessa maneira, economizam dinheiro que teriam gasto para pagar um técnico. Quando volto à casa de Marco, ele está junto com o vizinho, que ajuda na instalação da nova cozinha. À mesa, uma garrafa de Barbera aberta e os dois conversando como velhos amigos. É, o housing social evidentemente funciona.