O fascínio dos gatos só pode ser comparado aos raios de Betelguese, ao vermelho de Orion, ao azul de Eta Carinae. Os felinos são como que a imagem infinitamente misteriosa das idéias de Platão. A música das esferas e dos números.
Essa foi uma parte do diálogo que tive com a Doutora Nise da Silveira. Como testemunhas, Leo e Carlinhos, Cleo e Mestre Onça. E os gatos passaram a integrar boa parte de nossa amizade. Nise era íntima de seus enigmas. E eu buscava iniciar-me nesse universo.
{mosimage}Mandei-lhe a foto de um gato, que acabara de conhecer – amarelo como um girassol, olhos verdes, inquieto, como os de sua espécie – e que ensaiava uma tímida aproximação. Ofereci-lhe não sei quantos mimos e dons para que fizesse de meu jardim sua própria casa. Guardava um ar altivo e desdenhoso. Atingira o nirvana dos gatos-mestres, dos que viveram mil vidas e dos que sabiam a altura de quedas e telhados. Desconfiava que os gatos de uma certa idade se tornavam metafísicos. Como se fossem extremados bizantinos, mergulhando horas a fio em contemplação. Gatos monacais. Giróvagos. Estacionários. Ao que responde Nise, frente ao irredutível dos seres gatos:
Lindo, lindíssimo o seu gato mestre. Sabedoria profunda em seus olhos. Sabedoria difícil de adquirir. Talvez ele saiba o caminho da uniqueness. Depois de ter praticado muitas lutas marciais e disputas amorosas. Mas tudo isso sempre aconteceu nos telhados e hoje quase não há mais telhados. Mas “os apaixonados do infi nito”, os mesmos apaixonados da uniqueness continuam a buscar.
A paixão do infinito, ou a nostalgia do mais, coincidem em suas pupilas de fogo, na estranha e irredutível uniqueness. Mas era preciso nomear o gato, cuidando de emprestar-lhe um verbo impreciso e vago, a fim de não magoar o seu modo de estar-não-estando, ao receber um nome, sem se prender a formas específicas. Como dizem os teólogos, um gato definido não é um gato, ein begriffener Katz ist kein Katz. Nise responde, valendo-se de Eliot:
E hoje você me propõe outro difi cílimo problema: o nome do gato. Recorri logo ao poeta T. S. Eliot, no seu poema “The Naming of Cats”,
The naming of cats is a diffi cult matter
…..
When I tell you, a cat must have three different names,
First of all, there’s the name that the family use daily,
…..
But I tell you, a cat needs a name that’s particular,
A name that’s particular and more dignifi ed,
Else how can he keep up his tail perpendicular,
…..
But above and beyond there’s still one name left over,
And that is the name that you will never guese;
The name that no human research can discover –
But the cat himself knows, and will never confess.
…..
…..
His ineffable effable
Effanineffable
Deep and inscrutable singular Name.
Comparando suas dificuldades para dar um nome a este ser singular, mágico, o mais belo ser da natureza, segundo Leonardo da Vinci, que certamente era um entendido em beleza.
Pouco depois, o gato desapareceu de meus dias. Não mais que a imagem sonhada por Da Vinci. A casa mostrava em toda a parte sua ausência. A sua tremenda e solitária simetria. Buscamos seus rastros por toda a parte. Mas em vão. O gato regressara — inominado — ao aleph primordial:
Ia ainda dizer outras coisas, mas acabou de chegar sua última carta. Fiquei desolada! Mas estou certa que seu gato vai reaparecer. Os gatos são muito susceptíveis. Você, sem querer, o terá magoado? O gato custa a perdoar a menor desatenção. São muito exigentes. Será que você o retirou de alguma página da Divina comédia, onde ele se havia estendido? Para um gato, gato, isso é uma ofensa muito grande. Alguma mulher de coração esfiapado terá, sem querer, ma-
goado o gato? O gato é muito sensível. Também é boêmio e talvez esteja lhe experimentando.
Eu sei quanto eles, quando pensam uma coisa, custam a desprender-se dela. Depois da morte de Cléo, a quem eu dava carinhos e remédios por meio de um conta-gotas, seus dois filhos nunca mais se aproximaram de mim. De certo imaginaram que o remédio fosse um veneno… Tenho me desdobrado em explicações carinhosas, mas sem resultado algum. Espero com paciência recuperá-los e você também vai recuperar seu belo gato. Cante baixinho para ele. Ele volta, volta, tenho certeza. Escreva-me. O mundo dos sentimentos dos gatos é sincero e não de todo impenetrável. Ele está chegando… ele ouve de longe.
PS.: Pensamento da madrugada de hoje – Você teria trazido o gato da liberdade para o seu apartamento? O espaço livre é muito importante para o gato. Só quando menino ele se adapta a recintos fechados e às restrições dos habitantes de apartamentos. Talvez ele haja fugido para a liberdade, mas voltará pelo amor. Não desanime, mande notícias,
Nise
Cantei de todas as maneiras. Fiquei vigiando o seu regresso. Tenho certeza de que ninguém o retirou de sobre as páginas da Divina Comédia. Jamais voltei a vê-lo se não em sonhos. Talvez fosse realmente um monge errante, que fazia uma pausa em suas longas caminhadas — um ser que buscava a transitividade.
O fluxo em estado selvagem, como aprisioná-lo?
Tempo depois, uma gata menina é levada por amigos. Pequena. Afetuosa. Irritadiça. Conquistar-lhe a confiança não representou pequeno esforço. Branca e negra de pele — seus olhos e saltos não vacilavam. Vivia no alto, junto aos livros da biblioteca. Era preciso trazê-la para baixo, mas sem transformar-lhe em exílio a sede de alturas. Minha dúvida voltava-se mais uma vez para o nome. Havia pensado em duas ou três possibilidades, que tratassem do eterno feminino, dada a condição da gatinha. Ocorreu-me Nise e Beatrice. Sentimento de altas esferas. Mas havia pensado também na Diotima, de Hölderlin. A palavra final veio assim:
O nome de sua gatinha, assim penso, deverá ser Beatrice, por vários motivos. É um nome muito lindo e signifi cativo. Não esqueça que gatos e gatas são seres muito sensíveis. Facilmente sentem-se ofendidos. Perdoar é para eles dificílimo.
Beatrice foi de uma convivência pacífica e belicosa. Dava-me a impressão da síntese dos contrários. Difícil saber quando e como podia aproximar-me de si. Talvez não estivesse feliz no apartamento (ninguém pode ser feliz em apartamentos!) Ou quem sabe eu não me dedicava como devia à sua forma de ser e estar. Humana solidão. Humana ignorância. Foi um longo combate para vencer a indiferença de Beatrice. Cheguei a pensar na mudança do espaço, ao refazer a geopolítica da casa, alterando suas razões de estado. Obtive apoio de Leo e Nise, que escrevem a mim e Beatrice, intuindo as dificuldades da relação homem-gato:
Querido Marco
Amada Beatrice
Seu livro está iluminando toda nossa pequena casa. Nise anda com ele de um andar para o outro, não o solta um instante. Ela está muito decepcionada com o bicho gente e por isso agora esforça-se em metamorfosear-se num gato. Aprovo esta decisão de nossa amiga. Espero que você ame cada vez mais Beatrice e lhe dê o carinho que ela merece.
Eu estou ficando velho e um tanto impertinente, mas Nise me adora. Desejo que você se conserve corajoso como um gato que compreende os segredos das múltiplas vidas.
Beijos e muito afeto para você e Beatrice. De Nise também, certamente.
Nosso carinho
Leo – Nise
Com o passar dos meses, Beatrice me acolhe mais afetuosa com ronroneios e chamados outros. Sem perder os traços essenciais de sua personalidade, aprova meus serviços e cuidados. Não tenho dúvidas de que o tempo afetivo dos gatos pertence ao tempo aion, ao quinto elemento e aos números-idéia de Platão. Beatrice me acompanha quando estudo as partituras musicais, quando abro meus livros ou quando penso nos poemas futuros. Leo da Silveira comemora essa fase e insiste em passar — como gato mais velho — sua experiência à jovem Beatrice:
Leo escreve a Beatrice
Fiquei feliz de saber que você se aconchega no colo de Marco enquanto ele estuda, escreve. Você logo descobriu que estava junto a um poeta. Numa relação estreita com o poeta amigo você o levará a descobrir coisas extraordinárias, estou certo.
Sei que uma verdadeira relação de amor de um ser humano com o ser gato é arte muito difícil. Sutilíssima arte. Por telecomunicação você já me disse que está confi ante. Longas experiências da espécie gato já lhe ensinaram que as decepções, duras decepções, não são raras. O bicho homem é muito pretencioso, julga-se superior a todos os seus irmãos que vivem neste planeta. Nós, os gatos,
sem dúvida, somos superiores a todos os habitantes da Terra.
O homem nunca alcançará a capacidade elegante de saltar de grandes alturas, coisa que nós fazemos tão facilmente. Nem o dom de ver as notas musicais tomarem lindos contornos, segundo o privilegiado Stravinski descobriu: enquanto ele compunha, seu amigo gato saltava para brincar com as notas. O mesmo aconteceu a outros músicos, mas eles não sabem o que está acontecendo. Tão longe estão de uma profunda relação com o gato, enquanto este tenta desvendar-lhes segredos inutilmente. Os poetas são mais afins com o gato, que o diga Baudelaire. Por isso estou contente que você esteja junto de Marco. Mas não fi que satisfeita apenas com a proximidade. Sei que ele não é arrogante como o comum dos humanos. Você poderá suavemente transmitir-lhe muitas sutilezas. Alimentos, vagas carícias são totalmente insuficientes. Diga-lhe que os gatos são muito misteriosos. Seus olhos lindos alcançam esferas astrais, que jamais os homens alcançarão, enquanto estiverem prisioneiros nas suas espessas vendas corporais.
(remetente: Leo da Silveira)
Nise — através de Leo — clamava por uma visão cósmica do lugar de homens e gatos nos escaninhos do Universo, em suas remotas e estranhas comarcas, atravessadas pela perspectiva franciscana das criaturas e pela visão neoplatônica das esferas. Tratava-se de um gato platônico. O gato do Fédon – se fosse possível inventá-lo. A vida é uma preparação para a morte e para a liberdade. A destes olhos. A destes dias. A destes corpos. Ver além da espessura não seria mais que reeducar os sentidos. Foi o que aprendi com meus primeiros gatos, com Leo da Silveira e com a Dra. Nise: a tarefa de reeducar os sentidos. A poesia do Espaço. A poesia do Tempo. A força do salto quântico. O pulo do gato. Do universo ao multiverso: olhos atentos em órbitas de fogo. Pupilas infi nitas. Misteriosas. Ou como dizem os versos de Nise da Silveira: Le poète de l’espace est un vrai vagabond il saute d’une planète à l’autre d’une étoile à l’autre en grandes enjambées il ne porte ni bâton ni sac il est libre. Marco Lucchesi – Articoli Blok e Khliébnikov
Poesia e scienza – Quasi una cronistoria