A única regata do mundo composta de amadores chegou em outubro ao Rio de Janeiro na primeira etapa e seus tripulantes explicaram à Comunità a emoção de atravessar o oceano por meses a fio
Quem não pensou pelo menos uma vez na vida em deixar tudo e dar uma volta ao mundo, ou em fazer uma viagem de barco a vela como os antigos? E, por que não, unir tudo isso à emoção de uma competição? A Clipper de Volta ao Mundo oferece a todos — mesmo a quem não sabe que a água do mar é salgada — a oportunidade de viver as emoções de uma regata oceânica.
A ideia partiu do inglês Robin Knox-Johnston, que, em por volta de 1968, tornou-se o primeiro homem a circunavegar o globo sem escalas, sozinho. Hoje, aos 74 anos, é o presidente-executivo e fundador da Clipper. Ele continua a velejar: em 2010, participou da corrida Sydney-Hobart.
Embora a vela seja vista como um esporte de elite, o fundador da regata queria que fosse acessível a todas as pessoas, independentemente da idade ou do nível de experiência. Até hoje, mais de três mil pessoas já competiram nas oito edições da Clipper, a regata oceânica mais longa do mundo, que reúne 40.000 milhas e oito etapas.
— Uma pessoa pode começar a competição como principiante, mas depois de um ano se torna um especialista. Há pessoas que velejam uma vida inteira e nunca alcançaram 40 mil milhas — revela à Comunità Jonathan Morris, italiano que participou da primeira etapa da regata até o Rio de Janeiro.
A regata começou no dia 1º de setembro em Londres e em outubro chegou à sede oficial dos eventos de vela para os Jogos Olímpicos de 2016, a Marina da Glória, na capital fluminense.
— A vela é uma doença de família. Aprendi a velejar com o meu avô que tinha um barco. Descobri Clipper numa propaganda no metrô de Londres, onde moro atualmente. Liguei para saber como participar e me disseram que era muito novo. Tinha 17 anos e a idade mínima é 18 — conta Jonathan, que agora tem 20 anos e conseguiu realizar o seu sonho graças a um dinheiro que lhe deixou o seu avô antes de falecer, mais umas libras que obteve vendendo pedaços de parmesão na capital britânica.
— Custa muito participar. Para fazer apenas a primeira etapa, são necessárias 3000 libras (cerca de R$10 mil reais) e para dar a volta ao mundo 45 mil (150 mil reais). Além disso, tem que pagar o treinamento e o vestuário que não é barato — ressalta o estudante, filho de mãe italiana e pai inglês.
Enfim, é uma aventura para todos, mas não para todos os bolsos, embora todos os entrevistados tenham concordado com o fato de que valeu a pena por terem realizado um sonho.
Com desconhecidos no mesmo barco, de onde não se pode descer
Os participantes podem escolher entre a inscrição para a volta ao mundo ou apenas uma ou mais etapas. Em média, 10 membros de cada tripulação optam por conhecer os seis continentes. Os tripulantes que participam não se conhecem e por isso é preciso muita adaptabilidade e abertura mental. Este ano, são 670 pessoas provenientes de 40 países, com estilos de vida completamente diferentes.
Para se ter uma ideia, em cada barco convivem de 20 a 24 pessoas amadoras, guiadas por um skipper profissional. As idades e as profissões são as mais variadas: há enfermeiros, veterinários, banqueiros, estudantes, motoristas de caminhão, diretores de cinema, empreendedores e engenheiros. Desta edição, participa o capitão da seleção inglesa de rugby, Sevens Ollie Phillips, que deve disputar as Olimpíadas de 2016. Tem até um ex-agente da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos.
— Precisava de uma mudança. Quero desacelerar um pouco a minha vida e dedicar mais tempo a mim mesmo e menos ao trabalho — explica à Comunità Kevin Harney, um maltês de 54 anos casado três vezes e sem filhos. Presidente de uma empresa alemã, ele decidiu passar um ano competindo no barco Henry Lloyd.
Os motivos que levam alguém a empreender uma viagem como essa são vários: há aqueles que, como Kevin, pararam de trabalhar e querem fazer um ano “sabático”, e há quem se separou recentemente e quer dar um novo rumo à vida. Existem também aqueles que querem testar os próprios limites ou realizar o sonho de cruzar o oceano em uma embarcação como profissionais.
Nas edições passadas, pessoas que estavam na mesma embarcação se apaixonaram. Terminada a regata, se casaram.
— Muitas pessoas, depois de terem dado a volta ao mundo, mudam. Alguns trocam de trabalho, outros se divorciam. Entendem-se muitas mais coisas, como, por exemplo, que as coisas pequenas fazem uma diferença enorme dentro de um barco. Tudo aquilo a que normalmente não se dá tanta importância vale muito, como um banho quente, ou um vaso sanitário que fica parado e não se mexe — conta, rindo, Jonathan, que aproveitou a viagem para conhecer a família da avó emigrada para o Rio de Janeiro no segundo pós-guerra.
O participante mais jovem desta edição tem 18 anos e o mais velho 73. Cerca de 40% da tripulação nunca velejou antes de iniciar o treinamento obrigatório, que dura de três a quatro semanas.
— O treinamento começou em junho do ano passado no Canal da Mancha, onde existem condições climáticas incertas, embora não possam ser comparadas àquelas de uma travessia no Atlântico. Durante a regata, passamos por todas as condições meteorológicas que se possa imaginar, da tempestade à calmaria sem vento — conta à Comunità Antonio Naddeo, oriundo de Pompeia. Depois de 10 anos em Londres, mudou-se para Dubai, onde trabalha no mundo das finanças.
Racionamento de água no Equador
Jonathan revela que atravessar o Equador foi a parte mais difícil.
— É um desafio mental mais do que físico, pois as pessoas ficam nervosas, bravas. É uma situação difícil; a temperatura chega a 50 graus — afirma o tripulante do Henry Lloyd, o barco que ficou parado por 10 dias com o dessalinizador quebrado.
— Tivemos que racionar a água: nas últimas semanas, cada um tinha à sua disposição só dois litros de água por dia, no máximo, incluída a água para se limpar. Depois do Equador, havia muitas tempestades e chovia muito: aproveitamos para coletar, beber água da chuva e tomar banho — conta o jovem italiano.
A convivência forçada com desconhecidos num barco de 70 pés em alto-mar coloca a dura prova os participantes, que testam os próprios limites e a confiança nos outros. Por isso, é necessário colaborar sempre em qualquer condição. Se, por exemplo, uma pessoa deixa a corda de forma errada sem ver que do outro lado do barco há uma pessoa, pode machucá-la e até fazê-la perder um membro.
Uma escola flutuante para se aprender a viver na terra
A vela é uma escola de vida, por isso empresas fazem cursos de integração em alto-mar entre os colegas que trabalham na mesma equipe: todos devem saber o que está fazendo a outra pessoa. Quando alguém faz algo errado pode prejudicar o trabalho do outro.
— Se você fica bravo com alguém ou não gosta de outra pessoa, não pode ir embora e depois voltar, tem que ficar dentro do barco, não é possível descer. Não tem um espaço para você, nem um lugar para dormir. Dependendo da inclinação (45° ou 90°), dorme-se no lado direito ou no lado esquerdo, sobre um colchonete fino — explica o bolognese de 20 anos que bateu o recorde de velocidade na primeira etapa: 30,7 nós no Henry Lloyd.
A mesma opinião tem Antonio, que comparou a cama do barco a um caixão de mortos.
— Os espaços eram muito reduzidos porque a embarcação é criada exclusivamente para competições oceânicas.
Tudo é calculado, a comida por um mês e até os espaços. O abastecimento dos alimentos é feito sob o chão, para tomar banho usam-se lenços umedecidos e o cardápio é decidido antes de começar a regata.
— Acho que existe uma componente em comum entre os participantes. Além da paixão pelo mar, existe o desejo de desafiar a si mesmo e querer entender o próprio limite de resistência, como quem escala o Himalaia — declara Antonio, que participou da Clipper no barco suíço.
Junto a ele, havia outros dois italianos e um ítalo-suíço na embarcação. Terminada a primeira etapa da travessia, eles já estão se organizando para fazer uma viagem, juntos, no barco de um deles, nas águas mais tranquilas do Mediterrâneo.
— Depois de 40 dias em alto-mar, estou feliz de chegar, pois sei que realizei a minha aventura, mas não daria a volta ao mundo… Um ano comendo comida inglesa, não aguentaria! — brinca Mario Bitonti, recém-chegado ao Rio de Janeiro e já pronto para voltar a abraçar os seus dois filhos de cinco e oito anos em Cosenza, na Calábria, e trabalhar na sua empresa de madeira.
De acordo com o calabrês de 42 anos, é uma experiência que deixa muitas lembranças e também “muita saudade do céu estrelado que não existe em outro lugar, das cores do pôr do sol, do amanhecer no meio do oceano e da beleza do planeta”.
Outro italiano que participa do Clipper este ano é Andrea Sangiorgi, que comemorou 42 anos em meio ao oceano na primeira etapa. O tripulante italiano mora em Hong Kong há 14 anos e por isso ele escolheu velejar no barco chinês Qingdao.
— Queria navegar por todos os oceanos ou pelo menos pelos mais importantes: Atlântico, Índico e Pacifico. Faço três quartos da volta ao mundo — comentou o italiano, praticamente de vela nos fins de semana.
De acordo com ele, o clima no barco é relaxado, embora não faltem os momentos tensos e difíceis.
— Não pode haver brigas no meio do oceano. Às vezes dá vontade de descer e ir embora devido ao cansaço ou porque bate a vontade de desistir, mas estamos psicologicamente preparados. No fim das contas, são apenas semanas, dias, tudo passa.
As condições de vida a bordo também testam a paciência e o espírito de aventura dos participantes. Cada barco tem as suas normas. Normalmente a jornada se divide em turnos de quatro horas no convés e quatro horas no porão.
A regata leva 11 meses para completar o percurso de 40 mil milhas, seis continentes e 16 portos, com uma frota de 12 barcos de 70 pés. A Clipper Race 13-14 é composta de oito pernas, que inclui 16 corridas individuais. A primeira equipe a cruzar a linha de chegada ganha 12 pontos automaticamente. O número de pontos diminui a partir da ordem de chegada, ou seja, a equipe que chega por último ganha apenas um ponto. A equipe com o maior número de pontos ao final da competição é a campeã da Clipper Race.
Tripulantes verde-amarelos
Seis brasileiros experimentaram as emoções e os desafios da regata Clipper. A maior parte está tripulando o mesmo barco, o Old Pulteney. Um deles, João Gustavo Togneri, comentou em seu blog, antes de chegar ao Rio de Janeiro: “Não vejo a hora de chegar e correr para uma churrascaria rodízio e comer um boi inteiro!”. Já a brasileira Elaina Lourenço teve que ficar em um barco diferente do marido, João Guilherme Sauer, pois a regra não permite casais na mesma equipe. De acordo com o casal, que mora em Londres desde 2008, “foi uma maneira emocionante de visitar as famílias no Brasil”. A regata pode ser seguida em tempo real através do site www.clipperroundtheworld.com.