Comunità Italiana

Um café para Marin Sorescu

Parte essencial da história da literatura repousa na poética do encontro. Tramada pelos anjos que movem as letras do livro do mundo, os anjos da cabala, tão abissais em seus mistérios.
 
Não tenho como provar o que digo. Mas sei que existe uma verdade imponderável.
 
Abismo de palavras em branca superfície: espaço apontado por Lucian Blaga como sendo a imagem de um saber que cria camadas mais profundas de não saber (minuscunoastere).
 
Tive um desses encontros que me levou ao impacto da língua romena. George Popescu foi o meu Virgílio. Poeta de águas claras.
Metade anjo. Metade abismo.
A Romênia era e continua sendo para mim uma transcendência no campo da latinidade. E ela saltava dos olhos de George. Olhos difíceis de alcançar, os seus, como que habitados por uma rara e espessa neblina, mensageiros de verdades esquecidas, tal como os espelhos de Jean Cocteau. George é um poeta habitado pelo futuro. Futuro mais longo que o passado. Tal como o destino da literatura romena.
Craiova. Strada Brestei 59. Conversas infinitas, no calor da biblioteca. Uma floresta de poetas e palavras. Densas madrugadas. Cigarros. E charutos. Para espantar os vapores frios da noite. George me deu uma língua e uma constelação no céu de minhas buscas.
 
Essa língua, tão cheia de claroescuros, cujo léxico impressiona.
Ouço a polifonia de dácios, getas, gregos e romanos. A fronteira da latinidade, tão viva e porosa, com seu amplo acervo de palavras turcas e francesas. O mundo eslavo – formando um continuum admirável com o latino– apressa as núpcias de Cadmo e Harmonia.
 
Uma língua ao mesmo tempo rural e urbana, popular e erudita, dentro de cujas fronteiras as línguas ciganas perfazem uma circulação
capilar.
Anoto três formas de dizer pôr-do-sol e meus possíveis devaneios: Asfintit. Como que o Sol tocasse em pleno ocaso o Mar Negro e liberasse um vapor imenso, através do f e do t, tornado agudo pelos dois i.
 
Amurg. Sinto como que uma grande desolação: a consoante final tão abrupta e esse u tão escuro. Um resto de luz se perde à medida que avanço palavra adentro.
 
Apus. A sensação de um anoitecer precipitado, que começa no u e se prolonga nas horas mortas dos, que pronuncio como duas
semibreves.
Nosso diálogo girava em torno do labirinto da palavra e do fio de ouro da etimologia: Lauras, Verônicas, Ariadnes. Mas era a Helena de Pierre Jean Jouve aquela que me parecia melhor atender à síntese do feminino e seus arcanos. Por que nossas latinidades iam tão esquecidas, diante de tantas convergências?
O romeno e o português são as flores últimas do Lácio. Extremos que coincidem (como vertentes marginais) em relação a um possível centro de latinidade. E todavia estas flores parecem de todo solitárias.
Talvez a solução estivesse nas mãos dos poetas, em seu imaginário inquieto e gentil. Um passaporte para toda a latinidade.
Assim, passavam pela biblioteca – como os reis diante de um Macbeth siderado – os maiores poetas da Romênia. Macedonski e sua melodia, tão alta como as torres-agulha de Istambul e aquelas coloridas e aceboladas de Moscou. O verbo iridescente de Ion Barbu, criador inatingível, e a liberdade, brilhando a cada estrofe. As remissões de Arhgezi, com seu modo firme, delicado, irregular. Bacovia e sua tremenda melancolia, preso aos brancos e aos cinzas. A impertinência de Geo Bogza com o seu belo circo semântico. Gherassim Luca e o golpe de estado no seio da linguagem. Além da luminosa poesia de Blaga, a partir do cemitério romano, das aldeias e do espaço miorítico.
Mas George, e quanto a Eminescu, seria possível interpretarlhe a força de tanta e afortunada solidão, como sendo afluente e tributário, síntese e manancial de uma líquida poética, capaz de
conjugar passado e futuro num
só gesto?
 
George abre um livro e vocifera a plenos pulmões o grande poema de Marin Sorescu. Que começa assim: Eminescu nunca existiu…
Esse poema antológico me toma de assalto. Tudo cabe dentro dele. Eminescu surge mais como um universal poético do que como biografia, tal como Homero na obra máxima de Vico. Eminescu aqui é um destino. Síntese de coisas plurais. Cicatriz para tantas feridas. Mas com um lirismo surpreendente.
 
Foi assim que descobri a grande poesia de Marin Sorescu (1936 – 1996 ) e dela me ficou a idéia de um mistério que se radica na própria ausência de mistério, como disse Elie Faure sobre a pintura
de Leonardo. 

Uma poesia que parece tão simples de se fazer. Assim como a Mona Lisa e a Senhorita Pogany nos parecem tão simples, tão singulares no brilho da solidão que as atravessa. Os poemas de Sorescu sofrem dessa mesma irrepetível solidão.
Sublinho essa grande solidariedade entre as partes convidadas para a ceia de Sorescu. Não existem distâncias que não se comuniquem. Diferenças que não se entrelacem. E nem tampouco opostos que não se desfaçam para
uma solução de continuidade.
Tudo a partir de planos e enfoques oblíquos, imagens deslocadas, fantasmas de palavras, palpitantes de vida, livres, muito embora, do significado de que seriam historicamente portadoras.
Sorescu atravessa uma zona de dissonância. Mas não procura ruídos ou excessos. Ao fim e ao cabo, Mozart prevalece. Tudo caminha para uma relativa (ou suspirada) pax soresciana. O atonalismo  emerge, mas algo tímido e
sutil.