O histórico arquivo do oriundo Renzo Gostoli, protagonista da mostra em cartaz na Oi Futuro, é apenas a ponta do iceberg das memórias de suas viagens pelo mundo
No arquivo fotográfico de Renzo Gostoli existe um pedaço da história latino-americana. Um passado revelado através dos anos de vida e do profundo trabalho de um globetrotter ítalo-argentino, que fotografou momentos como a volta dos presos políticos argentinos a Buenos Aires, depois de ficarem seis anos detidos na Patagônia; ou Lolita Lebrón, a revolucionária porto-riquenha que, em 1954, atacou com armas semiautomáticas o congresso americano em Washington.
Ele pertence a uma época em que a fotografia era romântica e os momentos da vida eram gravados em filmes negativos, em original e não digitalmente ao infinito na hedonista realidade de hoje. Apesar do desconforto sofrido por causa da geracional passagem da fotografia analógica para a digital, ele não teme as novas tecnologias. Através de uma existência aventurosa, política e imprevisível que de Buenos Aires o levou a viver na Europa, no México e, desde 1987, no Rio de Janeiro, ele acaba de inaugurar um emocionante trabalho multimídia sobre o circo, que está em exposição até 27 de novembro na galeria Oi Futuro, no Flamengo, no Rio.
— Este trabalho multimídia sobre o circo começou como uma pauta, mas depois virou um verdadeiro projeto. Fotografei muito circos na Europa, circos de praças. Dois filmes sobre este assunto marcaram a minha vida: O maior espetáculo da Terra e Trapeze com Gina Lollobrigida e, me parece, Toni Curtis — conta Gostoli à Comunità, tomando um café em um cinema de Botafogo.
Por dez meses seguiu uma escola circense durante treinamentos e espetáculos. Trabalhou com perseverança e tranquilidade, aplacando a sede de desenvolver um projeto em profundidade e sem pressa de acabar, como costumava acontecer quando fotografava para as grandes agências de notícias, como France-Presse, Reuters, EFE e AP.
— Deixei as agências porque estava cansado. A sensação que eu tinha, naquela época, era a de estar no último vagão de um trem, onde eu tentava alcançar o primeiro, sem nunca consegui-lo. Os últimos tempos tinha se tornado realmente uma paranoia. Eu tinha que enviar fotos dos eventos o tempo inteiro, quando no passado as agências enviavam apenas algumas imagens de manhã e à tarde — conta o experiente profissional, que deixou as “news” para voltar a fotografar com prazer e resgatar uma visão que tinha perdido trabalhando exclusivamente com as notícias quentes.
— Eu usava a fotografia principalmente como auxílio ao meu ativismo político. Estudei sociologia na Argentina, mas não acabei. Deixei o país não como exilado, mas porque estava cansado da ditadura e queria viajar, conhecer o mundo.
Registros de um tempo com mais liberdade
Quando morou em Genebra, ajudava os refugiados chilenos e argentinos a ultrapassar a fronteira com a Suíça onde, pela lei helvética, tinham o direito de permanecer. A saída da Argentina, em 1973, foi uma verdadeira aventura. Em Buenos Aires, embarcou com Isoca e Jeorge, os amigos músicos, no Dresniça, um navio cargueiro iugoslavo.
— Foi uma viagem muito maluca e demorada. O navio entrou na Amazônia e depois foi para a África antes de chegar a Barcelona, onde fomos expulsos pelo comandante do navio — conta.
O comandante não gostava deles, pois tocavam música no navio, embora agradassem à tripulação.
— À noite, tocávamos juntos. A gente se divertia muito com eles, apesar das brigas furibundas que eles tinham. Eram sérvios, croatas, bósnios, das mesmas regiões eslavas, as quais entraram depois em conflito com a dissolução da Iugoslávia.
O fotógrafo revela que passou dois dias na alfândega do porto de Barcelona com 150 dólares no bolso e sem a mínima ideia para onde ir. Renzo levava consigo um laboratório fotográfico e os amigos músicos, um contrabaixo, uma bateria e outros instrumentos musicais. Conseguiram buscar tudo depois de terem comprado um carro velho por 50 dólares em Milão e, de lá, voltaram a Barcelona, onde pegaram a volumosa bagagem para partir, logo depois, rumo a Montreux, onde os amigos iriam tocar com Gato Barbieri.
— Era outra época. Havia mais liberdade no mundo, ninguém era parado nas fronteiras. Eu viajava com passaporte argentino, já que na Itália eu era um desertor, pois não tinha servido ao exército — comenta, ao lembrar uma época em que as pessoas eram mais livres para ir e vir pelo mundo.
Autodidata mas influenciado pelo pai
Gostoli, que até os seis anos falava apenas italiano e aprendeu espanhol quando começou a frequentar a escola, se considera um autodidata. O sentido estético da composição foi uma herança recebida do pai Mario Gostoli, um importante ourives de Buenos Aires, além de pintor e professor de arte.
— Eu tinha acesso a muitos livros de arte na infância e fotografei vários espetáculos de teatro. No México, onde comecei a trabalhar profissionalmente, fotografei muito o Ballet Nacional de México — diz o oriundo.
Da Suíça, foi morar na Cidade do México, onde sua carreira deslanchou definitivamente. O destino, porém, o levou mais uma vez a mudar de país depois de ter conhecido, de passagem no Rio de Janeiro, uma brasileira, com quem se casou.
— Tinha que ficar no Rio só três dias e acabei ficando 20. Casamo-nos no México, mas depois nos mudamos para o Rio — recorda com felicidade.
Os primeiros três anos na capital fluminense não foram fáceis.
— No começo foi difícil, mas depois comecei a trabalhar com a Reuters e mais tarde com a AP. Ao mesmo tempo, fazia freelancer para o El Pais e o Miami Herald, mas as agências tomavam todo o meu tempo e eu acabei trabalhando somente para eles.
Hoje, junto com o repórter multimídia Douglas Engle, é dono da Australfoto, uma agência que cobre acontecimentos e que também disponibiliza o arquivo do ítalo-argentino. Apesar da crise no fotojornalismo, Renzo não quer largar a profissão.
— Eles dão o seu crédito, mas eu não vivo de crédito. Você respira gás lacrimogêneo, leva balas de borracha, tanto para a internet quanto pelo jornal impresso, então qual é a diferença? — reclama um irritado Renzo, queixando-se de um diretor de cinema que queria usar grátis uma foto exclusiva com Julio Cortazar para um documentário. Ele se queixa da absurda situação do mercado, que “não quer pagar” pelo profissionalismo dos repórteres fotográficos, e cita o problema que teve com a revista Newsweek, que veiculou fotos dos protestos no Rio, mas pagou poucos centavos porque as publicou na internet.
— É com certeza uma exploração, uma maneira de baixar os custos nas costas dos profissionais. Infelizmente, o fotografo é uma espécie em extinção — afirma.