Um panorama da poesia italiana do século XX e início do XXI. É como pode ser resumido o conteúdo do recém-lançado Vozes – Cinco décadas de poesia italiana, pela Editora Comunità. As organizadoras Patricia Peterle, docente de Literatura Italiana da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Elena Santi, doutoranda em Literatura também da UFSC, conduziram um profundo trabalho de pesquisa a partir de um projeto iniciado em 2014. O resultado é uma obra com a intensa participação de 33 poetas, de diversos estilos, origens e idades. Com orelha de Marcos Siscar, o volume foi apresentado este mês na Bienal Internacional do Livro e na UFSC e, em outubro, será destaque durante uma mesa-redonda na Casa das Rosas, em São Paulo, com a participação das organizadoras.
A poesia da Itália ainda é pouco conhecida no Brasil e o livro ajuda a preencher tal lacuna, aponta Patricia, autora de diversos volumes para o aprendizado da língua de Dante, como o clássico Italiano urgente para brasileiros (2001, GEN).
— O nosso mercado editorial, apesar do crescimento, ainda é muito carente, há muitos livros e autores, para além da literatura italiana, que até hoje não circulam por aqui. Quando se fala de poesia, essa lacuna, inevitavelmente, aumenta. Um só exemplo é suficiente: não temos acesso ao Montale da Bufera, de Satura, que são textos fundamentais e que alimentaram tantos poetas das gerações seguintes. Satura é um livro de ruptura e grande mudança como o é também Transumanar e organizar, de Pasolini, que recentemente nos chegou graças ao incansável trabalho de Maurício Santana Dias — explica a professora e escritora ítalo-brasileira Peterle.
Uma das contribuições de Vozes é apresentar ao leitor brasileiro poetas que nunca antes traduzidos para o português, à exceção de Enrico Testa e Eugenio De Signoribus, que já tinham aparecido nas páginas do Jornal Rascunho de Curitiba, relata a co-autora. A segunda grande contribuição está no formato do livro, que traz, além dos poemas, entrevistas com os 33 poetas. O leitor pode, assim, estabelecer um diálogo por meio das entrevistas, que “tratam do que é a poesia, como escrevê-la, que língua usar”.
— Os poetas colocam suas opiniões, seus testemunhos sobre essa arte que acompanha o homem e que, talvez, faz parte intrinsecamente dele — afirma Peterle, explicando os critérios de escolha dos 33 autores entrevistados: a variedade de escrita e de escolha poética; a representatividade e atividade no panorama contemporâneo italiano; e a construção de um mapa diversificado para o leitor brasileiro.
Entre as mudanças mais notáveis na poesia italiana nas últimas décadas, está a tendência, a partir da década de 1960, à “inclusão”, ou seja, “elementos do cotidiano, de caráter familiar, do trabalho, de uma língua “menos poética”, que acompanha as transformações sociais e econômicas da Itália e não só”, observa a professora universitária.
— É como se a poesia se “proletarizasse”, deixando de lado seu pedestal e certa aura. Tudo isso significa um “tom” mais baixo. Porém, os próprios autores que contribuíram para essa mudança, aos poucos, se dão conta dos seus limites, uma vez que a língua de todos corria o risco de se transformar na língua de ninguém. As formas mais tradicionais, como o soneto, que haviam sido deixadas de lado, passam a ser revisitadas e transformadas. Há uma quebra, uma ruptura, para com a categoria de um “eu” monolítico, dialógico.
Poetisa italiana revela influência de Clarice Lispector em sua obra
Em uma dessas entrevistas, surge a revelação da influência exercida pela escritora brasileira Clarice Lispector na obra da poetisa Mariangela Gualtieri, nascida na Emília-Romanha. Perguntada sobre quais autores italianos ou estrangeiros operam em sua escritura, ela enumera a autora de A Paixão segundo G.H. ao lado de Dostoiévski, Kafka, Simone Weil e Rossana Campo.
Nas entrevistas, os poetas falam sobre a relação do seu trabalho com outras artes, como o cinema e o teatro, e opinam sobre a influência da internet no mundo da poesia. Enquanto o lombardo Alessandro Fo acredita que a rede “ajuda muitos escritores que têm dificuldade de acesso aos grandes editores a serem lidos e conhecidos” e que o Facebook pode servir como uma “notável vitrine” para promover novas vozes, o romano Roberto Deidier observa que hoje é quase impossível se deparar com um jovem poeta inédito, pois “todos já publicaram um livro de papel ou e-book”, enquanto antes acontecia exatamente o contrário, pois fazia-se um longo aprendizado em revistas, em antologias da moda, para ir construindo atenção da crítica no tempo e chegar ao primeiro livro. Isso não acontece mais, ressalta Deidier, e “o livro muitas vezes serve como álibi para um problema de identidade que não tem nada a ver com poesia”. Já o marchigiano Massimo Gezzi classifica o Facebook como “genial e inexpugnável” por ter fornecido a cada um de nós “o espelho que cada Narciso vinha procurando”.
Outro aspecto que chama a atenção em muitas entrevistas é uma certa abertura do poético.
— O encontro com outras artes, a relação eu-outro-eu, as múltiplas experimentações (incluindo movimentos de vanguarda), a busca de diálogos e a releitura de certa tradição. Seria muito difícil indicar tendências “fixas” nessas águas tão agitadas. O que vimos é um cânone policêntrico, é uma pluralidade em constante movimento. Hoje, como nas décadas passadas, essas tensões persistem, fazendo com que o debate sobre linguagem, poesia e instrumentos de expressão permaneça atual. O panorama continua ainda mais diversificado e estimulante — resume Peterle.
Há ainda um pequeno texto introdutório para cada poeta, que apresenta de forma sintética alguns de seus traços mais marcantes.
—Vozes pode ser lido por um leque bem diversificado de leitores: por quem se interessa pela cultura italiana, pois aqui encontrará várias referências culturais, históricas, hábitos e costumes; por quem gosta de poesia em geral, pois o livro é um modo prático, ágil, de se ter esse contato; por quem estuda poesia ou estuda literatura italiana, que encontrará, enfim, referências para outras leituras. Não é um livro com começo, meio e fim — finaliza Peterle.
Os poetas italianos do livro
Giampiero Neri
Tiziano Rossi
Elio Pecora
Beppe Mariano
Valentino Zeichen
Franca Grisoni
Giuseppe Conte
Maurizio Cucchi
Vivian Lamarque
Cesare Viviani
Eugenio De Signoribus
Umberto Fiori
Mariangela Gualtieri
Milo De Angelis
Gianni D’Elia
Mariano Bàino
Patrizia Valduga
Alessandro Fo
Antonella Anedda
Michele Mari
Claudio Damiani
Enrico Testa
Fabio Pusterla
Valerio Magrelli
Tommaso Ottonieri
Marcello Frixione
Edoardo Zuccato
Emilio Zucchi
Fabio Franzin
Nicola Gardini
Roberto Deidier
Elisa Biagini
Massimo Gezzi
Um dos poemas inéditos
Autoria: Claudio Damiani
Caro Sole, tu ogni giorno
Non so quante tonnellate di materia perdi
e anch’io, ogni giorno, perdo qualcosa,
ogni giorno perdiamo un giorno
ma quando sarà finito il suo tempo
si potrà dire di te: è stata una stella generosa,
per tutto il tempo ha illuminato e scaldato
i corpi intorno, senza fermarsi mai
dando tutto il possibile di sé,
sempre al massimo delle sue possibilità,
tutto quello che poteva fare l’ha fatto
e tutti sempre l’hanno ringraziato
e l’hanno adorato, l’hanno benedetto
e nella sua lunga vita lui ha sempre gioito
della riconoscenza di tutti.
Caro Sol, tu a cada dia
Nem sei quantas toneladas de matéria perdes
e eu também, a cada dia, perco algo,
a cada dia perdemos um dia
mas quando terá acabado teu tempo
dir-se-à de ti: foi um astro magnânimo
por todo o tempo iluminou e esquentou
os corpos ao redor, sem nunca parar
dando todo o possível de si,
sempre no limite de suas possibilidades
tudo o que podia fazer fez
e todos sempre lhe agradeceram
e o adoraram e o abençoaram
e em sua longa vida sempre gozou
do reconhecimento de todos.